Livro Dois: A Visita (123-218)

A Aparição (123-138)
Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências.
Uma vida inteira pode ser virada do avesso num só dia por uma dessas intermitências. (123)

A tempestade parecia a sublevação dos pontos cardeais [...] os desmandos cósmicos (124)

a porta da frente do casarão se destrancou por si mesma. Para mim era um sinal: uma invisível mão me convidava a cruzar a linha proibida. [...] De súbito vi o corpo. [...] Um redemoinho interior me tonteou. [...] O corpo se certificava, estrumado na varanda. (125)

o buraco nunca chegou a ficar pronto. Assim que chegávamos ao fundo, a areia soprada pelo vento recobria a cova por completo. E aconteceu uma, duas e três vezes (128)

Onde antes jazia o corpo, não havia resto de coisa alguma [...] Aos poucos, um novo estado de espírito se instalou em mim, revertendo o susto em sobranceiro sossego. (130)

eu nunca tinha exercido a minha própria infância, meu pai me envelhecera desde nascença.
Foi então que sucedeu a aparição: surgida do nada, emergiu a mulher. (131)

Inesperadamente, já não sabia viver, a Vida se havia convertido numa desconhecida língua. (132)

A intrusa passou por mim, senti pela primeira vez a doçura de um perfume feminino. [...] Deitei tento no modo como se movia, graciosa, mas sem os caricatos trejeitos com que Ntzundi representara as fêmeas criaturas. [...] Aquela era a primeira mulher e ela fazia o chão evaporar. [...] Aquele primeiro encontro marcou em mim, fundo, o misterioso poder das mulheres. (133)

Meu pai queria fechar o mundo fora dele. Mas não havia porta para ele se trancar por dentro. (137)

percorri, olhos e dedos, os papéis de Marta. Cada folha foi uma asa em que ganhei mais tontura (138)

Os papéis da mulher (139-152)

Sou mulher, sou Marta e só posso escrever. [...] E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. [...] Não tenho saudade, não tenho memória: meu ventre nunca gerou vida, meu sangue nunca não se abriu em outro corpo. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja. (139)

Essa fidelidade levou-me ao mais penoso dos exílios: esse amor afastou-me da possibilidade de amar [...] Porque eu preciso tanto de nascer! De nascer outra, longe de mim, longe do meu tempo. [...] Para se estar vazia é precio ter dentro. E eu perdi a minha interioridade. [...]
Vês como fico pequena quando escrevo para ti? [...] a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim.
Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. (140)

ardo para viver. E morro afogada pela minha própria pele. (141)

sou uma palavra, tu me escreves de noite, de dia me apagas. Cada dia é uma folha que tu rasgas, sou o papel que espera pela tua mão, sou a letra que aguardo pelo afago dos teus olhos.

[…]

Nada é anterior a mim, estou inaugurando o mundo, as luzes, as sombras. Mais do que isso: estou fundando as palavras. Sou eu que as estreio, criadora do meu próprio idioma. (142)

Perseguida pelo medo da velhice, deixei envelhecer a nossa relação. Ocupada em me fazer bela, deixei escapar a verdadeira beleza, que apenas mora no desnudar do olhar. O lençol esfriou, a cama se desventurou. […] Eu ficava bela para mim, que é um outro modo de dizer: para ninguém. […] essas negras […] são sempre de corpo inteiro. […] Todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nós, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa. (143)

tu eras um poeta. Eu era a tua poesia. (144)

Só nua eu te podia ler. Porque te recebia não em meus olhos, mas com todo o meu corpo, linha por linha, poro por poro. […] viajar só me interessava se fosse para atravessar infernos, passar a alma por labaredas […]as mulheres explicam-se a si mesmas falando sobre os seus homens. (145)

há lembranças que apenas na morte se reencontram. (146)

quem mais me fez companhia na tua ausência foi a tua amante. (147)

Só agora entendi que a sedução mora em outro lugar. Talvez no olhar. (148)

Ao contemplar a queimada na savana, me veio uma saudade dessa troca de fogo, o espelho do deslumbramento em Marcelo. Deslumbrar, como manda a palavra, deveria ser cegar, retirar a luz. […] do amor me interessa o não-saber, deixar o corpo fora da mente, em descomando absoluto. Mulher apenas na aparência. Debaixo do gesto: bicho, fera, lava.[…] Ele dizia-me - «vou contar estrelas» [...] O dedo pontuava os ombros, as costas, o peito. Meu corpo era o céu de Marcelo. E eu não soube voar, entregar-me ao torpor daquele contar de estrelas. (149)

Eu era uma tradutora surda, incapaz de verter em gesto o desejo que falava dentro de mim. (149-150)

Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos. (150)

O meu amor escrevia de modo tão profundo que, no decurso da leitura, eu sentia o braço dele roçando o meu corpo e era como se desabotoasse o vestido e as roupas desabassem a meus pés. (150)

- A poesia é uma doença mental. (151)

Os homens não olham as mulheres que acabaram de amar porque têm medo. Têm medo do que podem encontrar no fundo dos olhos dela. (151)

Ordem de expulsão (153-172)

Tememos a Deus porque existe, mais medo temos do demónio porque não existe. (153)

Aqui [África] o Sol geme, sussura, grita. […] Lá, o Sol é uma pedra. Aqui, é um fruto. (158)

O amor é um território onde não se pode dar ordens. E ele criara um recanto governado pela obediência. (161)

As mulheres são como as guerras: fazem os homens ficarem animais. (162)

Segundos papéis (173-189)

Ela se separaria em duas como um fruto que se esgarça: o seu corpo, era a polpa, era a alma […] De noite, depois de ter sido comido, lambuzado e cuspido, o corpo retornaria ao caroço e ela dormiria, enfim, como um fruto. (179)

Como se pode ser feliz tendo um corpo que deixou de ser nosso. O sexo, disse ela, não se faz nem com o corpo nem com a alma. Faz-se com o corpo que está debaixo do corpo. (179)

Depois da chuva terminar, porém, é que sucedeu a inundação: um dilúvio de luz. Intensa, total, capaz de cegar. E me surgiram quase indistintas, a água e a luz. […] Todas as cores descoloriram, todo o espectro se tornou num lençol de brancura. (185)

Este silêncio não é calmaria alguma que tivesse experimentado antes. Não é uma ausência que apressadamente preenchemos com o medo do vazio. É um despertar por dentro. Eis o que sinto: sou possuída pelo silêncio. Nada é anterior a mim, penso. […] - Sou a primeira criatura […] De repente, o sentimento de criação se ensombra. Nada, afinal, é um princípio. Na minha vida tudo é agónico, terminal. Eu sou a que já fui. (187)

A nudez da mulher negra, contudo, me conduzia ao meu próprio corpo. Pensando no modo como via o meu corpo concluí: eu não sabia estar nua. E dei conta: o que me cobria não era tanto o vestuário mas a vergonha. […] África não era um continente. Era o medo da minha própria sensualidade. (188)

A loucura (191- 204)

O silêncio é uma travessia. Há que ter bagagem para ousar essa viagem. (192)

- Cada um de nós foi uma mentira, mas nós os dois fomos verdade. Entende Mwanito? (200)

Para o louco, falar é sempre pouco. O que ele queria dizer estava para além de qualquer idioma. (201)

Ordem para matar (205- 218)

A verdade é triste quando é única. Mais triste quando a sua feitura não tem […] o concerto da mentira. (205)

Os bichos são pré-criaturas. O Homem é que é patenteável. Só rasgando a última página do livro de Deus é que ele desafia os poderes divinos. (207)

- Metade do que fiz foi errado [Zacaria]; o resto foi mentira. (209)


Vá lá. façam o favor de serem felizes neste NATAL.

"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo, e que posso evitar que ela vá a falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.

Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um "não". É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?

Guardo todas.

Um dia vou construir um castelo..."

(Fernando Pessoa)

Um apontamento de «Natal».

Aqui fica uma pequena nota para reflexão neste fim de período a adivinhar o Natal.

1. Ignorem a professora que, na sua incapacidade, desespera.
«Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. o pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro». Mia Couto. (Jesusalém, p:57).
As oportunidades é para se cumprirem no seu nascimento.



2. As «novas oportunidades» são renascimentos tardios para os que conseguem vencer os seus demónios.



Uma canção de Natal para vencer a ironia da contemporaneidade.


Livro Um - A Humanidade (13-119)

Eu, Mwanito, o afinador de silêncios (13-32)

A humanidade era eu, meu pai, meu irmão Ntunzi e Zacarias Kalash [...] Jezibela, tão humana que afogava os devaneios sexuais de meu velho. E também não referi o meu Tio Aproximado (14)

Ninguém é de uma raça. As raças [...] são fardas que vestimos [...] eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens. (15)

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que podemos brilhar [...] Eu nasci para estar calado [...] tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios (15)

E todo o silêncio é música em estado de gravidez (16)

O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas (20)

Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus (20)

os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas (20-21)

Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. (25)

Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros lugares (27)

do ventre do rio contemplei os rebrilhos do sol [...] A ideia de peixarmos, cativos dentro de água, me conduziu à terrível conclusão: os outros, os do lado do Sol, eram os vivos, as únicas criaturas do mundo (30-31)

Meu Pai, Silvestre Vitalício (33-58)

O vento era, para Silvestre, uma dança de fantasmas. As árvores, ventadas, convertiam-se em pessoas, eram mortos que se lamentavam, a querer arrancar as suas próprias raízes. (33-34)

Dordalma […] Em lugar de se esfumar no antigamente, ela se imiscuía nas frestas do silêncio, nas reentrâncias da noite. (35)

meu pai vazara o mundo para o poder encher com as suas invenções. (36)

Silvestre Vitalício sabia tudo e esse saber absoluto era a casa que me dava resguardo. Era ele que conferia nome às coisas, era ele que baptizava árvores e serpentes, era ele que previa ventos e enchentes. Meu pai era o único Deus que nos cabia. (36-37)

Rebaptizados, nós tínhamos outro nascimento. E ficávamos isentos do passado. (41)

Todo o nascimento é uma exclusão, uma mutilação. Fosse vontade minha e eu ainda seria parte do seu corpo [mãe], o mesmo sangue nos banharia. Diz-se «parto». Pois seria mais acertado dizer «partida». (44)

Eu já aprendera a vislumbrar as líquidas luzes do rio, já sabia viajar por letrinhas como se cada uma fosse uma estrada infinita. (48)

- Há visitas que nem se dá conta. São anjos e demónios que chegam sem pedir licença… […]

- Anjos ou demónios, a diferença não está neles. Apenas está em nós. (49-50)

Talvez fosse esse desespero que o fazia entregar a uma religião pessoal, uma interpretação muito própria do sagrado. Em geral, o serviço de Deus é perdoar os nossos pecados. Para Silvestre, a existência de Deus servia para O culparmos pelos pecados humanos. Nessa fé às avessas não havia rezas, nem rituais: uma simples cruz a entrada do acampamento orientava a chegada de Deus ao nosso sítio. (52)

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. o pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro. (57)

Meu irmão, Ntunzi (59-74)

Silvestre achava que uma boa história era uma arma mais poderosa que um fuzil ou navalha. (59-60)

[Ntunzi] - Neste mundo existem os vivos e os mortos. E existimos nós, os que não temos viagem. (60)

A cegueira é o destino de quem se deixa tomar de assalto pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo.
-Mulheres são como as ilhas: sempre longe, mas ofuscando todo o mar em redor. (62)

Os mortos não morrem quando deixam de viver, mas quando os votamos ao esquecimento. (65)

O medo faz dilatar as distâncias. [...] Era o pior dos maus-olhados: aquele que lançamos sobre nós próprios. (71)

Não viver é o que mais cansa. (72)

O Tio Aproximado (75-88)

- são todos cúmplices, esses dois muito triplos - garantia Ntzundi. - É o sangue que os liga, sim, mas é o sangue dos outros. (78)

- saudade é esperar que a farinha se refaça em grão. (80)

Quem perde esperança foge. Quem perde confiança esconde-se. (81)

O Tio Aproximado ficou pontapeando as pedras do átrio. A raiva é apenas um modo diverso de chorar. Conservei-me distante, fingindo que arrumava as ferramentas. Ninguém se deve aproximar de um homem que faz de conta que não chora. (83)

Pois digo e repito. De que vale ter crença em Deus se perdemos fé nos homens? [...] Política? A política morreu, foram os políticos que a mataram. Agora, restou apenas a guerra (87)

Zacaria Kalash, o militar (89-104)

- Estes são os avessos dos meus umbigos. POR aqui – e apontava os buracos – por aqui se escapou a morte (p. 90)

O que ele queria era contar histórias de caça, falar sem conversar, escutar-se a si mesmo para deixar de ouvir os seus fantasmas. (p. 91)

Nós não entendíamos Jesusalém, dizia Kalash. – As coisas, aqui, são pessoas – explicou. Queixávamo-nos que estávamos sós? Porém, tudo em nosso redor eram pessoas, humanas criaturas vertidas em pedras, em árvores, em bichos. E até em rio. (p. 101)

A jumenta Jezibela (105 - 119)

Afinal o Lado-de-Lá estava vivo e governava as almas de Jesusalém (p. 119)

Um rápido olhar sobre jesulalém

Mia Couto surpreendeu, mais uma vez, com Jesusalém. O amadurecimento da estrutura do romance não trai a matriz dos seus conto; a entrada abrupta na história, a fragilidade psicológica das suas personagens, nem a «ilógica» do pensamento estruturante que transpira da cosmovisão inscrita nas suas obras.

«Mwanito, o afinador de silêncios» é o narrador, o contador de histórias que vai desfiando das suas memórias, entretecendo as verdades que cada personagem sustenta, deixando ao leitor o prazer de desenlaçar a crença de cada um e conseguir uma visão de conjunto.

De um modo abrupto chegamos a Jesusalém, cientes de um passado que todas as personagens se esforçam em esquecer, negando a história. Fugindo da realidade cruel, reinventarem-se no imaginário de veredas de Jesusalém, um espaço real, mas sonhado de modo diverso.

São estes caminhos encruzilhados e sulcados no interior das personagens que o imaginado tenta cicatrizar e rearranjar o passado obrigado a esquecer. Tanto Silvestre Vitalício que decreta: «vocês não podem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro», como o militar Zacaria Kalach desejam fugir do passado e do tempo que os devora. Assim, inauguram uma nova ordem, mudando o nome com excepção do narrador, ainda muito novo para ser do tempo passado.

É neste enquadramento que se vão anulando as identidades, indiciando os afectos e os desafectos passados com o sagrado feminino como a razão desta ordem, com forte expressão na negação do feminino. No entanto, é sedutor o contraditório da trama urdida por Mia Couto ao destacar vozes poéticas do feminino, dando enfoque ao feminino como temática central do romance. É neste contexto que Ba Ka Khosa realça aspectos incontornáveis: «a escolha de mulheres poetas para os cantos, e da mulher mãe, amante, esposa, como desencadeadora da trama romanesca. Este jogo entre os vates dos salmos, e os personagens do romance – maioritariamente masculinos – dá-nos a dimensão indescritível do mundo efabulatório de Mia Couto. Nos cantos, as musas, as deusas, o sagrado feminino expressando-se na mais elevada linguagem: a poesia. No romance, no texto, a negação do feminino, a desacralização da mulher, a diabolização da criadora da vida».

Este olhar de Mia Couto sobre a mulher incomoda preconceitos sociais, confronta sensibilidades masculinas e femininas e coloca-se numa dimensão da essência do eu que se exprime feminino. São estas provocações que vão despertanto consciências e moldando comportamentos. Já Marguerite Yourcenar havia notado estes contrasensos: «A vida das mulheres é limitada demais ou excessivamente secreta. Que uma mulher se conte, e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil pôr qualquer verdade na boca de um homem».

Apresentação do Livro de MIa Couto: Jesusalém


«Ouver» a Palestra: Antes de nascer o mundo - Mia Couto


Ungulani Ba Ka Khosa, escritor moçambicano.

A viagem interior de Mia Couto

Pedem-me palavras primeiras ao lançamento em solo pátrio do livro Jesusalém; pedem-me uma leitura, um olhar, um escorço a um escritor que há muito se remessou, com o seu engenho, para horizontes que não se confinam somente as fronteiras mundiais da língua da sua escrita, do seu discurso literário. Que palavras para um transfronteiriço, um disseminador de linguagens, de imagens, de identidades de um rincão dos trópicos perdidos, para a geografia do mundo, para o mapa dos saberes perenes, senão o enaltecimento desse magistério, desse exemplo que nunca se escorou nas efémeras facilidades tropicais, por valer-se sempre do seu talento, da sua arte.

Na moeda da nossa cultura há muito que Mia Couto deixou de se inscrever no reverso, nesse lado onde pontificam outras nobres figuras das nossas letras e artes, porque transladou, por mérito, por labor, ao anverso, e tornou-se na efígie da nossa moeda na transacção no grande bazar das culturas. A essa moeda já não se pergunta pela sua validade, mas pedem-se trocos, quer-se conhece-la nas suas múltiplas vertentes, nos seus variados espelhos. No dédalo das culturas, a obra do Mia, para nosso gáudio, não foi devorada pelo Minotauro sedento do efémero, do passadiço, porque o fio de Ariadne, o fio da perseverança, o fio da qualidade, o fio da salvação ao olvido, o guia pelos labirintos do mundo da literatura saudável, robusta, perene, e sem artifícios, como dizia Hemingway. Com Mia ganha a literatura moçambicana, ganham os escritores, e ganha este País ainda relutante em assumir que a grande bandeira na memória dos povos é a cultura drapejando pelo mundo nos seus variados tentáculos.

Ao ler Jesusalém, ocorreu-me, pela estratégia, o Engenhososo Fidalgo D. Quixote de la Mancha. Cervantes, com a sua obra, erigiu, como todos sabemos, o fundamento do mundo romanesco moderno: a ambiguidade. Não há uma verdade, há muitas verdades. Verdades relativas que se vão entrelaçando, formando um nó que o leitor vai desenlaçando com o prazer ou desprazer, dependendo do engenho do autor. Em Cervantes, D. Quixote sai para o mundo, desfazendo injustiças e protegendo damas, personificadas no amor imaginário pela Dulcineia Del Toboso. Em Jesusalém os personagens saem do mundo e pervagam pelos labirintos da vida interior, esquecendo injustiças e riscando damas da memória. Em Cervantes o Fidalgo D. Quixote, acompanhado do seu escudeiro Sancho Pança, quer endireitar o mundo. Em Jesusalém, Silvestre Vitalício e o serviçal Zacaria Kalach, escudeiro nos modernos dizeres, querem sair da História, da selva dos tempos modernos. Nos dois a viagem. Num, do imaginário à realidade, noutro, da realidade crua, sangrenta, ao imaginário interior.

Algo nos perturba nas primeiras páginas de Jesusalém: o título e os Livros - divisores de capítulos, alusão aos livros biblícos. À partida somos perseguidos por essa imagem secular e tutelar de Jesus, o Cristo de uma moral, de uma teologia. Perguntamo-nos se a alusão aos Livros - Um, Dois e Três -, é o egresso, a saída dos livros canónicos em direcção ao mundo do Cristo descrucificado, ou um artificio da efabulação, um jogo de espelhos? A poeta Sophia de Mello Breyner Andresen não nos ajuda muito ao dizer que “Escuto mas não sei⁄ Se o que oiço é silêncio ⁄ Ou deus”. Mas as dúvidas dissipam-se quando o emblemático Silvestre Vitalício convoca os eremitas e anuncia que a terra da iniciação chamar-se-á Jesusalém, e os que nela irão conviver serão desbaptizados. A excepção do mais novo, por sinal o narrador, os principais personagens da trama convertem-se a nova ordem. Orlando Macara, passa a Tio Aproximado; Olindo Ventura a Ntuzi-sombra; Ernestinho Sobra a Zacarias Kalach; Mateus Ventura A Silvestre Vitalício. O mais novo mantêm-se como mwanito, diminutivo de rapaz em chissena, língua do centro do país, por o pai achar que “…ainda está nascendo”. Formaliza-se, na ordem simbólica, o destino dos personagens, dando, por conseguinte, sinal de partida e coerência ao que Vitalício dissera ao Mwanito, o afinador de silêncios: “…vocês não podem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro.” Quer-se inaugurar uma nova ordem, uma nova gramática, uma sintaxe fora do mundo caótico, desordenado, onde outrora viveram. Para tal é preciso instaurar um mundo, uma humanidade no dizer do autor. Jesusalém é o espaço demarcado, o nicho que se quer diferente. “Um dia , Deus nos virá pedir desculpa, diz Vitalício ao grafar, por cima da tabuleta indicativa de Jesusalém, a frase: “Seja bem-vindo, Senhor Deus.”

A abertura dos capítulos e subcapítulos dos Livros comportam, no meu entender, Salmos – permitam-me invocar o sagrado termo para o romance. Tirando as citações do sociólogo e também poeta francês Jean Baudrillard, e do escritor Herman Hesse, Mia elegeu para seus salmos quatro grandes poetas, sendo três do espaço lusófono- as brasileiras Adélia Prado e Hilda Hilst, e a portuguesa Sophia de Mello Breyener Andresen -, e uma de língua castelhana, a argentina Alejandra Pizarnick. Interessante notar na construção do romance, no jogo de afectos e desafectos, a escolha de mulheres poetas para os cantos, e da mulher mãe, amante, esposa, como desencadeadora da trama romanesca. Este jogo entre os vates dos salmos, e os personagens do romance - maioritariamente masculinos -, dá-nos a dimensão indescritível do mundo efabulatório de Mia Couto. Nos cantos, as musas, as deusas, o sagrado feminino expressando-se na mais elevada linguagem: a poesia. No romance, no texto, a negação do feminino, a desacralização da mulher, a diabolização da criadora da vida. Que é isto senão a anfibologia, o jogo de sentidos, a ambiguidade do texto, a razão da literatura?

Diz a poeta Alejandra Pizarnick: “Yo me levanté de mi cadáver, e fui em busca de quien soy. Peregrina de mí…” No romance, pelo contrário, não se busca a identidade, não se procura o eu, quer-se, isso sim, matar a memória, esquecer o mundo vivido, e invocar uma nova ordem que se fundamente no silêncio. Um silêncio com um Deus que Hilda Hilst alvitra como “ O Deus de que vos falo ⁄ Não é um Deus de afagos ⁄ É mudo. ⁄ Está só…”. Mas é em Sophia de Mello que está o canto primeiro e último, a voz iniciática em “ Sou o único homem a bordo do meu barco. ⁄ Os outros são monstros que não falam, ⁄ Tigres e ursos que amarrei aos remos, ⁄ E o meu desprezo reina sobre o mar. ”, e o canto último em “ Nunca mais amarei quem não possa viver ⁄ Sempre, ⁄ Porque eu amei como se fossem eternos ⁄ A glória, a luz e o brilho do teu ser, ⁄ Amei-te em verdade e transparência ⁄ E nem sequer me resta a tua ausência, ⁄ És um rosto de nojo e negação ⁄ E eu fecho os olhos para não te ver. ⁄ Nunca mais servirei senhor que possa morrer.” Está dito. O anátema a uma realidade cruel, predadora, que nos desumaniza com discursos envenenados, máquinas trituradoras de boas consciências com a efemeridade de sonhos adocicados, é sinal de busca de outros horizontes que a nossa consciência, liberta das cartilhas castralizadoras da história, nos vai ditar nessa longa viagem pelo interior de nós mesmos

Mia está ciente de que não há rincão neste mundo onde a voz humana não possa chegar. Os tempos modernos anularam barreiras, aproximaram mundos, desfizeram mitos. Não há mais mão autocrática que possa travar, por tempo indeterminado, a barreira da comunicação, o fluxo do pensamento. Em Jesusalém a ponte entre mundos nunca foi totalmente anulada, porque o Aproximado aproximou sempre os mundos, ainda que na vertente material, palpável. O mais interessante neste jogo de luzes e sombras, é a quebra dos silêncios advir do corpo de mulher, duma figura feminina transposta de outros oceanos, como que a provar que o mundo é tão grande e ao mesmo tempo pequeno na confluência dos sentimentos. Se o feminino desencadeou a partida, a fuga, o distanciamento, o mesmo feminino veio aglutinar e encadear outras ligações, outros discursos, outros silêncios, outras anarquias. É a Marta, simbolizando o distante ⁄ próximo, que anuncia ao Vitalício que não é o único a sair do mundo: -“ Caro Ventura, uma coisa lhe posso dizer: não foi só o senhor a sair do mundo.” O mundo está a nossa janela.

Se evoquei Cervantes, fi-lo com a deliberada intenção de dizer que a viagem, a procura de significados , é presença constante desde os antanhos da literatura. Se Cervantes guiuo o seu fidalgo pelas terras da Mancha, Aragão e Catalunha, a busca de verdades, encontrou verdades relativas. Em Mia, a viagem é para a cura. E isso torna-se apodíctico quando o personagem Mwanito, diz: “ –Deixo de ser cego apenas quando escrevo.” A escrita tornou-se orgânica, transformou-se em mais um dos sentidos do corpo. Sem ela a cegueira é incontornável. E para que isso não aconteça é preciso viajar, viajar sempre no barco da escrita. Mia busca sonoridades, sons que a pauta da vida não grafou. E é nessa viagem infinita, nessa incessante busca do som puro que a literatura, o romance inaugurado por Cervantes há quatro séculos, encontra a sua vida, o seu oxigénio. Com Mia, mais que com os inauguradores de correntes, os exegetas do fim do romance, encontramos o prazer da efabulação, o encanto de criar, de amar a palavra, de usufruir o texto.

Fico grato por te ter como lábaro - não o estandarte das iniciais de Jesus Cristo na época de Constantino, a efígie literária nos labirintos do mundo da escrita. Este Jesusalém que se quer como o livro dos livros ensina-nos que nesta selva de desigualdades, de alienação global, de homogeneização de ambições mesquinhas e terrenas, o grande desafio está em abrir até aos limites a grande coutada da vida: a nossa consciência.

Ungulani Ba Ka Khosa (Algumas obras: Ualalapi, Orgia dos Loucos, Histórias de Amor e Espanto, No Reino dos Abutres)

Maputo,23 de Junho de 2009

Eu e Vós

Depois desta caminhada de quinze anos, coube a todos vós a minha despedida. Um adeus transporta nostalgia, mas também guia uma partida para nova caminhada e esperança de novos desafios.

É assim que, ao mesmo tempo, nasce um repto de continuidade, de manter activas as ligações, a cumplicidade e a confiança.

Eu não desapareço, continuo disponível e contactável por aqui, na rede. Cabe a vós manter o mesmo olhar e continuar a provocar-me com as vossas dúvidas, os vossos sonhos ou simplesmente dizer um simples olá.

Eu continuarei a enfrentar os vossos olhares interrogativos noutros lugares, mas sempre com a mesma postura.

Para mim, todos os anos se renova o desafio de vos despertar e fazer-vos acreditar que sois únicos, irrepetíveis, que só se vive uma vez e que os outros, os que se sentam e caminham ao vosso lado, são o mundo de amanhã, construído hoje.

O mundo está aí à espera para que o tomeis. Mas, mais importante, é celebrarmos e felicitarmo-nos por estar nele.

Vá lá…

Vai escrevendo.

Joanamaria

Joanamaria deixou um novo comentário na sua mensagem "Por que ou porque passarei os alunos…":
A escola é como uma segunda casa para muitos de nós. Quando não estamos de férias, a maioria das horas da semanas são passadas dentro dos portões de uma escola. Temos amigos, não só alunos, mas também professores. Há quem critique relações muito próximas entre alunos e professores, mas temos mesmo que só vos ver como pessoas que nos ensinam umas coisas durante 90 minutos por dia? Temos de vos ver como os "papões" que só nos passam coisas chatas para fazer em casa? Temos mesmo de vos ver como pessoas horriveis que nos fazem estudar imensas horas por semana porque marcaram testes importantes para a nota final? Eu cá acho que não! A escola é, sem dúvida o reflexo da nossa sociedade, mas não tem que ser vivida como tal! Se na sociedade nos sentimos inseguros, não é por isso que temos de nos sentir de igual modo na escola. É aí que durante muitos meses abrimos a alma a novas escolhas, a novas oportunidades a novos conhecimentos. É obvio que as notas são importantes e lutar por uma nota muito boa é algo que temos de fazer.. mas será que decorar, deitar para o papel e tirar 20 é realmente aprender? Este ano aprendi, que não é quem decora que aprende, porque mais tarde esquece.. Quem aprende é aquele que olha o livro como um amigo, que olha a matéria como algo interessante e bonito que é bom aprender. Temos de levar isto como uma caminhada como outra qualquer e não como um pesadelo. A escola tem de ser vista como uma segunda casa, não como uma prisão! E não é, sem dúvida, a 4ª classe de antigamente que era boa! Se a sociedade mudou, se as mentalidades se abriram, porque raio teriamos de continuar com aquela educação? Ate porque educação nao recebemos só em casa, com a familia, recebemos também na escola. Alias, não são só os alunos que aprendem com os professores, os bons professores também aprendem com os alunos ;)
ahahah, 01h52 e eu no blog do stor ! depois nao diga que eu nao comentoo ;)

Apontamentos sobre as «Memórias de Adriano» (p. 223-246)

Apesar de tudo, era demasiado nova. Há livros a que só devemos abalançar-nos depois dos quarenta anos. Antes dessa idade corre-se o risco de desconhecer a existência das grandes fronteiras naturais que separam, de pessoa para pessoa, de século para século, a infinita variedade de seres, ou, pelo contrário, de dar exagerada importância às simples divisões administrativas, às formalidades da alfândega ou às guaritas dos postos armados. Foram-me precisos esses anos para aprender a calcular exactamente as distâncias entre o imperador e eu. (p. 227)

este ascetismo e este hedonismo são, em muitos pontos, permutáveis. (p. 227)

A vida das mulheres é limitada demais ou excessivamente secreta. Que uma mulher se conte, e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil pôr qualquer verdade na boca de um homem. (p. 231)

O romance histórico de 1830 cai, é certo, no melodrama e no folhetim de capa e espada [...] No nosso tempo, o romance histórico, ou o que, por comodidade, se consente em designar como tal, só pode ser imerso num tempo, tomada de posse de um mundo interior. (p. 232)

A minha própria existência, se eu quisesse escrevê-la, seria reconstituída por mim, de fora, penosamente, como a de outra pessoa; teria que recorrer a cartas, a lembranças de outrem, para fixar essas flutuantes memórias. Nunca são mais que paredes desmoronadas, divisórias de sombras (p. 233)

Interdizer a si mesmo as sombras projectadas; não permitir que o bafo de um hálito se estenda sobre o aço do espelho; aproveitar somente o que há de mais duradouro, de mais essencial em nós, nas emoções dos sentidos ou nas operações do espírito, como ponto de contacto com aqueles homens que como nós trincaram azeitonas, beberam vinho, bezuntaram os dedos de mel, lutaram contra o vento agreste e a chuva que cega, ou procuraram no Verão a sombra do plátano, e gozaram, e pensaram, e envelheceram, e morreram. (p. 234)

A substância, a estrutura humana não mudam. Nada mais estável que a curva de um tornozelo, o lugar de um tendão ou a forma do dedo de um pé. Mas há épocas em que o calçado deforma menos. No século de que falo, estamos ainda muito perto da livre verdade do pé nu. (p. 234)

O próprio Antínoo só pode avistar-se por refracção, através das recordações do imperador, quer dizer, com uma minúcia apaixonada e alguns erros. (p. 236)

Apercebi-me rapidamente de que escrevia a vida de um grande homem. Daí, maior respeito pela verdade, mais atenção e, quanto a mim, maior silêncio. (p. 240)

Todo o ser que viveu a aventura humana fui eu. (p. 241)

Este século II interessa-me porque foi, durante muito tempo, o dos últimos homens livres. Pelo que nos diz respeito, estamos talvez já muito distantes desse tempo. (p. 241)

a fidelidade aos facto aumenta fortemente o seu valor humano (p. 247)

Patientia (205- 222)

a passagem do tempo apenas acrescenta à infelicidade mais uma vertigem (p. 208)

Não sabia ainda que a morte pode tornar-se objecto de ardor cego, de uma fome como o amor [...] combate sem glória contra o vácuo, a fadiga, o tédio de existir que leva ao desejo de morrer (p. 209)

Confiei toda a minha vida na sabedoria do meu corpo; procurei saborear com discernimento as sensações que este amigo me proporcionava: tenho por dever apreciar também as últimas (p. 212)

não podemos encerrar-nos durante anos num único pensamento sem fazer entrar nele, pouco a pouco, todas as rotinas de uma vida (p. 216)

Nota. Dada a natureza do tema e porque a juventude dos meus alunos é um bem muito estimado por mim, fico por aqui neste capítulo.

Disciplina augusta (163-204)



Tinha desde há muito concedido por toda a parte isenções análogas aos médicos e aos professores, na esperança de favorecer a manutenção e desenvolvimento de uma classe média séria e sábia. Conhecendo-lhe os defeitos, mas um Estado só subsiste por ela. (p. 165-166)

Antímaco compreendera melhor o mistério dos horizontes e das viagens e a sombra projectada pelo homem efémero nas paisagens eternas. (p. 167)

o mundo talvez não tenha nenhum sentido, mas, se tem algum, este exprime-se em Elêusis […] Tudo entrava ali, Héstia e Baco, os deuses do lar e os da orgia, as divindades celestes e as do além-túmulo (p. 168)

toda a tolerância concedida aos fanáticos faz-lhes acreditar imediatamente na simpatia pela sua causa (p. 169)

os pedantes irritam-se sempre quando os outros sabem tão bem como eles o seu mesquinho ofício (p. 171)

A palavra filantropia é grega, mas é o legista Sávio Juliano e eu quem trabalha para modificar a miserável condição de escravo (p. 171)

espanto-me mesmo de que aqueles municípios, muitos dos quais mais antigos que Roma, se mostrassem tão prontos a renunciar aos seus costumes, por vezes bastante judiciosos, para em tudo se assimilarem à capital. O meu fim era simplesmente diminuir essa massa de contradições e de abusos que acabam por fazer do processo um matagal onde as pessoas honestas não ousam aventurar-se e onde prosperam os bandidos. (p. 173)

Perdera […] aquela agilidade de espírito que me permitia associar-me ao pensamento de outrem, de tirar proveito dele, ao mesmo tempo que o julgava (p. 176)

Povo algum, excepto Israel, tem a arrogância de possuir toda a verdade nos estreitos limites de uma única concepção divina, insultando assim a multiplicidade de deus que contém tudo (p. 179)

em todos os combates entre o fanatismo e o senso comum, este último raramente vence (p. 179)

tudo o que põe em relevo o esforço do homem, nem que seja só por um dia, parecia-me salutar perante um mundo tão pronto a esquecer (p. 191)

chegara à idade em que cada lugar belo lembra um outro mais belo, em que cada delícia se agrava com a lembrança de delícias passadas. Aceitava entregar-me aquela nostalgia que é a melancolia do desejo. (p. 191)

Não tenho filhos e não o lamento […] Mas esse desgosto tão vão baseia-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho forçosamente nos prolonga e a de que este estranho amontoado de bem e de mal, esta massa de particularidades ínfimas e bizarras que constitui uma pessoa mereça ser prolongado. Utilizei o melhor que pude as minhas virtudes; tirei partido dos meus vícios; mas não tenho especial empenho em legar-me a alguém. (p. 192)

a possibilidade de atirar fora a máscara em tudo é uma das raras vantagens que o envelhecimento me dá (p. 194)

a minha opinião a seu respeito modificava-se sem cessar, o que só acontece como os seres que nos tocam de perto; contentamo-nos em julgar os outros mais por alto, e de uma vez para sempre. (p. 195)

A idade nunca me pareceu uma desculpa para a malignidade humana; verei antes nela uma circunstância agravante (p. 197)

Os deuses não se levantam; não se levantam nem para nos advertir, nem para nos proteger, nem para nos recompensar, nem para nos punir (p. 198)

mas aos dezassete anos o excesso é uma virtude (p. 202)

Há mais de uma sabedoria, e todas são necessárias no mundo, não é mau que alternem (p. 204)

dali em diante podia voltar para Tíbure, reentrar nesta inactividade que é a doença, experimentar, com os meus sofrimentos, mergulhar no que me restava de delícias, continuar em paz o diálogo interrompido com um fantasma (p. 204)

Saeculum aureum (119-162)


Antínoo era grego [...] Mas a Ásia havia produzido naquele sangue um pouco acre o efeito da gota de mel que turva e perfuma o vinho puro. (p. 122)

Só fui senhor absoluto uma única vez e de um único ser (p. 122)

Uma hora de sol fazia-o passar da cor do jasmim à do mel [...] o jeito de infantil de fazer beicinho carregou-se de uma amargura ardente, de uma saciedade triste. Na verdade aquele rosto mudava como se eu o tivesse esculpido dia e noite. 
Quando me volto de novo sobre esses anos julgo encontrar a Idade de Ouro. Tudo era fácil: outrora os esforços eram recompensados por uma satisfação quase divina. 
A paixão cumulada  cumulada tem a sua inocência, quase tão frágil como qualquer outra
[...] ao romper do dia descíamos para nos banharmos nas margens do rio, pisando, ao passar, as altas ervas molhadas pelo orvalho nocturno, sob um céu donde pendia o delgado crente da lua (p. 122)
A travessia do Bósforo sob a tempestade de neve foi bela; houve cavalgadas na floresta trácia, com o vento áspero engolfando-se nas pregas das capas (p. 124)

erigiu-se uma coluna, onde foi gravado um poema, para comemorar essa lembrança de um tempo em que tudo, visto a distância, parece ter sido nobre e simples, a ternura, a glória, a morte. (p. 124-125)

Avistava por entre as cordas o perfil do meu jovem companheiro, sensatamente ocupado a desempenhar a sua parte no conjunto, e os seus dedos tocando com cuidado ao longo dos fios esticados. Este belo Inverno foi rico de convívios amigáveis (p. 126)

Aquele belo ser sensual encarava a morte com horror; eu não me apercebia de que ele já pensava muito nela. Quanto a mim, compreendia mal que se deixasse voluntariamente um mundo que me parecia belo, que se não esgotasse aé ao fim, a despeito de todos os males, a última possibilidade de pensamento, de contacto e mesmo de olhar. Mudei muito depois. (p. 128)

do alto do Etna [...] desenrolou-se de um horizonte ao outro um imenso véu de Íris; sobre as neves dos cimos brilharam estranhos fogos; o espaço terrestre e marítimo abriu-se ao noso olhar até a África visível e a Grécia adivinhada. Foi um dos momentos culmiantes da minha vida. Não faltou nada, nem a franja dourada de uma nuvem, nem as águias, nem o copeiro da imortalidade [...] confesso sem rodeios as causas secretas dessa felicidade: aquela calma tão propícia aos trabalhos e às disciplinas parece-me um dos mais belos efeitos do amor (p. 128)

Naquela época punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la, e também em julgá-la, a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores dos meus actos; e que é a própria voluptuosidade senão um momento de atenção apaixonada do corpo? Toda a felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor deselegância desfeia-a, a menor estupidez embrutece-a. (p. 129)

Todas as divindades me pareciam, cada vez mais, misteriosamente fundidas num todo, emanações infinitamente variadas, manifestações iguais da mesma força: as suas contradições não eram mais do que uma forma de acordo. (p. 130) 

Há muito tempo já que eu preferia as fábulas relativas aos amores e às querelas dos deuses aos comentários ineptos dos filósofos sobre a natureza divina; aceitava ser a imagem terrestre daquele Júpiter tanto mais deus quanto é homem (p. 132)

Gostava muito que figurasse nas moedas romanas um perfil de imperatriz tendo no reverso uma inscrição, umas vezes ao Pudor, outras à Tranquilidade (p. 133)

O meu jovem pastor tornava-se um jovem príncipe. Já não era a criança zelosa que, nas paragens, saltava do cavalo para me oferecer água das fontes recolhida nas suas mãos: o doador sabia agora o imenso valor dos seus dons. 

Ofereço aqui aos moralistas uma ocasião fácil de triunfar sobre mim (p. 134)

Entre tantos disfarces, no meio de tantos prestígios, aconteceu-me esquecer a pessoa humana, a criança que se esforçava em vão para aprender Latim, que pedia ao engenheiro Decriano que lhe desse lições de Matemática e depois renunciava a elas, e que, à mínima censura, ia amuado para a proa do navio, contemplando o mar. (p. 136)

Foi então que uma melancolia momentânea me apertou o coração: pensei que as palavras acabamento, perfeição, contêm em si a palavra fim: talvez eu tivesse somente oferecido mais uma presa ao tempo devorador. 

Não amava menos; amava mais. Mas o peso do amor, como o de um braço ternamente pousado sobre um peito, tornava-se pouco a pouco mais difícil de suportar. (p. 137)

Aconteceu-me bater-lhe: lembrar-me-ei sempre daqueles olhos assombrados. Mas o ídolo esbofeteado continuava a ser ídolo, e os sacrifícios expiatórios começavam. (p. 138)

O tempo de Elêusis tinha passado [...] convinham àquele momento da vida em que a dança se torna vertigem, em que o canto se acaba em grito (p. 139)

Dominava-me a curiosidade dessas regiões intermédias em que a alma e a carne se fundem, em que o sonho responde à realidade e, por vezes, a ultrapassa, onde a vida e a morte trocam os seus atributos e as suas máscaras.

não será a alma apenas o supremo resultado do corpo, frágil manifestação da dor e do prazer de existir? É, pelo contrário, mais antiga que este corpo modelado à sua imagem, e que, melhor ou pior, lhe serve momentaneamente de instrumento? É possível chamá-la ao interior da carne, restabelecer entre elas esta união estreita, esta combustão a que chamamos vida? Se as almas possuem a sua identidade própria, podem elas tocar-se, ir de uma para outra como o bocado de um fruto, o gole de vinho que dois amantes passam um ao outro num beijo? Todos os sábios mudam de opinião sobre estes assuntos vinte vezes por ano. (p. 141) 

Em Alexandria as religiões são tão variadas como os negócios: a qualidade do produto é mais duvidosa. (p. 147)

Jerusalém significava-me, pela boca de Akiba, a sua vontade de se conservar até o fim a fortaleza de uma raça e de um deus isolados da raça humana. (p. 148)

Antínoo, deitado no fundo da barca, encostara a cabeça aos meus joelhos; [...] A minha mão deslizou na sua nuca, sob os cabelos. Nos momentos mais vãos ou mais ternos, eu tinha ainda o sentimento de ficar em contacto com os grandes objectos naturais, a densidade das florestas, o dorso musculado das panteras, o pulsação regular das fontes. Mas nenhuma carícia chega à alma. (p. 150)

uma criança receosa de perder tudo encontrara o meio de me ligar a si para sempre. Se pensou proteger-me com aquele sacrifício, deve ter-se julgado bem pouco amado para não sentir que o pior dos males seria perdê-lo. (p. 154-155)

Estava fatigado daquelas figuras colossais de reis todos idênticos, sentados lado a lado, apoiando na sua frente os pés longo e chatos, daqueles blocos inertes em que não está presente coisa alguma daquilo que para nós constitui a vida, nem a dor, nem a reflexão que organiza o mundo em volta de uma cabeça inclinada. (p. 155-156)

o imperador […] pegou na sua adaga e lavrou naquela pedra dura algumas letras gregas, uma forma abreviada e familiar do seu nome ADRIANO… Era ainda uma oposição ao tempo: um nome, uma soma de vida de que ninguém computaria os inúmeros elementos, uma marca deixada por um homem perdido nesta sucessão de séculos (p. 156)

Tellus stabilita (77-118)

Tentei demonstrar aos Gregos que não eram eles sempre os mais sábios e aos Judeus que não eram de modo algum os mais puros. [...] Aquelas raças, que viviam há séculos porta com porta, nunca tinham tido a curiosidade de se conecher nem a decência de se aceitar mutuamente. (p. 80)

sabia que o bem, como o mal, é uma questão de rotina, que o temporário se prolonga, que o exterior se infiltra no interior e que, com o decorrer do tempo, a máscara toma-se face. Pois que o ódio, a estupidez, o delírio têm efeitos duradouros, não via razão para que a lucidez, a justiça, a benevolência não tivessem também os seus. (p. 80)

Confessei o meu medo: não me sentia mais isento de crueldade que de qualquer outra tara humana: aceitava o lugar-comum que diz que o crime atrai crime, a imagem do animal que uma vez provou o gosto do sangue (p. 83)

Cada um de nós tem mais virtudes que os outros supõem, mas só o êxito as torna notórias, talvez porque se espera então que deixemos de as praticar. Os seres humanos confessam estupidamente as suas piores fraquezas quando se espantam de que um senhor do mundo não seja indolente, presunçoso ou cruel. (p. 85)

aprendi a suportar os Jogos […] Detestava aqueles massacres em que a fera não tem uma probabilidade; no entanto, ia percebendo pouco a pouco o seu valor ritual, os seus efeitos de trágica purificação sobre a multidão inculta (p. 86)

aparentar desdém pela alegria dos outros é insultá-los (p. 86)

A moral é uma convenção privada; a decência é uma questão pública; todo o desregramento excessivamente visível deu-me sempre a impressão de uma exibição de má qualidade (p. 86)

Sobre a amizade de Plotina a sua amizade continuava a ser exigente, mas, apesar de tudo, só tinha exigências sensatas (p. 87)

Todo o prazer sentido com gosto me parece casto (p. 88)

Um triunfo só assenta bem aos mortos. Durante a vida há sempre alguém para censurar as nossas fraquezas, como outrora a César sua calvíce e os seus amores (p. 88-89)

Roma já não cabe em Roma: daqui em diante tem que decair ou igualar-se a metade do mundo [...] Virtudes que eram suficientes para a pequena cidade das sete colinas teriam que tornar-se flexíveis, diversificar-se, para convirem à terra inteira. (p. 89-90)




toda a criação humana que aspira à eternidade deve adaptar-se ao ritmo instável dos grandes objectos naturais, harmonizar-se com o tempo dos astros (p. 90)



E agradecia aos deuses por me terem concedido viver num tempo em que a tarefa que me coube consistia em reorganizar prudentemente o mundo e não em tirar do caos uma matéria ainda informe ou deitar-me sobre um cadáver para tentar ressucitá-lo (p. 90-91)



Alegrava-me que as nossas religiões vagas e veneráveis decantadas de toda a intransigência ou de todo o ritual selvagem, nos associassem misteriosamente aos sonhos mais antigos do homem e da terra, mas sem nos proibir uma explicação laica dos factos, uma visão racional do comportamento humano. Agradava-me enfim que estas mesmas palavras Humanidade, Felicidade, Liberdade não houvessem ainda sido desvalorizadas por demasiadas aplicações ridículas. (p. 91)



toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado. E nunca prestei grande atenção às pessoas bem intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. (p. 91)



Devo acrescentar que acredito pouco nas leis. Demasiado duras, são transgredidas com razão. Demasiado complicadas, o engenho humano encontra facilmente maneira de se escapar por entre as malhas dessa nassa monótona e frágil. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que tem de mais profundo a piedade humana; serve também de almofada à inércia dos juízes. As mais velhas participam daquela selvageria que se empenhavam em corrigir; as mais veneráveis são um

produto da força. (p. 91-92)



Até agora todos os povos decaíram por falta de generosidade (p. 93)



Duvido de que toda a filosofia do mundo consiga suprimir a escravatura: o mais que poderá suceder é mudarem-lhe o nome. (p. 93)



A condição das mulheres é determinada por estranhos costumes: são ao mesmo tempo dominadas e protegidas, fracas e poderosas, excessivamente desprezadas e excessivamente respeitadas. Neste caos de usos contraditórios, a sociedade sobrepõe-se à natureza [...] A fraqueza das mulheres, como a dos escravos, resiste à sua condição legal; a sua força vinga-se nas pequenas coisas em que o poder que elas exercem é quase ilimitado (p. 94)



Somos funcionários do Estado, não somos Césares (p. 97)



Construir é colaborar com a terra; é pôr numa paisagem uma marca humana que a modificará para sempre (p. 101)



Cada pedra era a estranha concreção de uma vontade, de uma memória, por vezes um desafio. Cada edifício era o plano de um sonho (p. 102)



Sou como os nossos escultores: o humano satisfaz-me; nele encontro tudo, até o eterno. (p. 104)


O vento atirou-nos muitas vezes seguidas para a costa que havíamos deixado: aquela travessia contrariada proporcionou-me espantosas horas vazias […]
durante a sua vida breve, cada homem tem sempre que escolher, entre a esperança infatigável e a sensata ausência de expectativa, entre as delícias do caos e as da estabilidade, entre o Titã e o Olímpico. A escolher entre eles ou a conseguir pô-los, um dia, de acordo um com o outro. (p. 108)



Estas vistas do espírito são desprovidas de valor prático: deixam contudo de ser absurdas desde que o calculador se conceda, para as suas computações, uma porção bastante vasta de futuro (p. 108- 109)


Era um sábio indiano [...] as suas meditações o induziam a acreditar que o universo inteiro não é mais do que um tecido de ilusões e erros: a austeridade, a renúncia, a morte eram para ele o único meio de escapar à corrente variável das coisas [...] de encontrar, para além do mundo dos sentidos, aquela esfera do divino puro, aquele firmamento fixo e vazio com o qual Platão também sonhou [...] Aquele brâmane chegara ao estado em que coisa alguma, excepto o seu corpo, o separava já do deus intangível, sem substância e sem forma (p. 112)


Elêusis [...] Aqueles grandes ritos simbolizam apenas os acontecimentos da vida humana, mas o símbolo vai mais longe do que o acto, explica cada um dos nossos actos em termos de mecânica eterna (p. 115)


Uma vez na minha vida fiz mais, ofereci às constelações o sacrifício de uma noite inteira[...] entreguei-me, do anoitecer à madrugada, àquele mundo de chama e de cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. [...] conheci mais de um êxtase: há alguns atrozes e outros de uma perturbante doçura. [...] Mas a noite síria representa a minha parte consciente de imortalidade. (p. 117)

Varius multiplex multiformis (29-76)

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas. (p. 34)

os magísteres exerciam sobre os discípulos uma tirania que eu teria envergonhado de impor aos homens; cada um, encerrado nos estreitos limites do seu saber, desprezava os colegas que, tão estreitamentecomo eles, sabiam outra coisa. (p. 34)

Ensinaram-me a entrar alternadamente no pensamento de cada homem, a compreender que cada um se decide, vive e morre segundo as suas próprias leis. (p. 34)

Leotíquido [...] ensinou-me as preferir as coisas às palavras, a desconfiar das fórmulas, a observar de preferência a julgar. Este grego ensinou-me o método. (p. 36)

Pertencia a esse tipo de espíritos, tão raros, que, possuindo a fundo uma especialidade, vendo-a por assim dizer de dentro e de um ponto de vista inacessível aos profanos, conservam contudo o sentido do valor relativo na ordem das coisas e a medem em termos humanos. [...] nunca hesitava perante inovações úteis. (p. 38)

Há poucos a quem não possa ensinar-se convenientemente alguma coisa. O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem, e desinteressarmo-nos precisamente de cultivar todas aquelas que ele possui. (p. 40)

Serviano deveria ter compreendido que se não impede tão facilmente um homem resoluto de continuar o seu caminho, a não ser que se vá até o assassinato. (p. 46)

(Trajano, imperador romano) Tinha encarado as minhas loucuras de rapaz com uma indignação que não era absolutamente injustificada, mas que só se encontra em família; as minhas dívidas escandalizavam-no, aliás, muito mais que os meus desatinos. Outros traços meus o inquietavam; pouco culto, tinha pelos filósofos e pelos letrados um respeito comovente, mas admirar de longe os grandes filósofos é uma coisa e ter a seu lado um jovem tenente com demasiado verniz de literatura é outra. Não sabendo onde se situavam os meus princípios, os meus limites, os meus travões, supunha-me desprovido e sem recursos contra mim mesmo. (p. 46-47)

a maior parte das minhas pretensas proezas não passava de bravatas inúteis [...] misturado com a exaltação quase sagrada [...] o meu baixo desejo de agradar fosse por que preço fosse e de chamar a atenção sobre mim. (p. 49)

Um ser embriagado de vida não prevê a morte; ela não existe; ele nega-a em cada um dos seus gestos [...] ela não é para ele mais que um choque ou um espasmo (p. 49)

Trajano enfiou-me no dedo o anel de diamantes que ele recebera de Nera e que continuava a ser mais ou menos o sinal da sucessão no poder. Nessa noite adormeci contente. (p. 50)

Havia perdido uma grande parte do meu ignóbil medo de desagradar [...] o meu tempo de braceletes e perfumes tinha passado. (p. 51)


sozinho no meu quarto, ensaiando os meus efeitos diante de um espelho, sentia-me um imperador (p. 52)

Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano. (p. 55)

Sobre a mulher velha Reencontava o círculo estreito das mulheres, o seu duro sentido prático e o seu céu cinzento desde que o amor já lhe não dá esplendor (p.55)

Previa o futuro com bastante exactidão, coisa possível, aliás, quando se está informado acerca de um bom número de elementos relativos ao presente (p.67)

Sobre Plotina  A amizade era para ela uma eleição em que se empenhava por completo, entregava-se-lhe absolutamente [...] A intimidade dos corpos, que nunca existiu entre nós, foi compensada pelo contacto de dois espíritos estritamente identificados um com o outro (p. 68)

As minhas apreensões subsistiam, mas eu dissimulava-as como se fossem crimes; ter razão cedo demais é errar. (p. 69)

Os Judeus e os Árabes tinham desde o princípio feito causa comum contra uma guerra que ameaçava arruinar o seu negócio; mas Israel aproveitava-se disso para se lançar contra um mundo de que era excluído pelos seus furores religiosos, os seus ritos singulares e a intransigência do seu Deus (p. 70)

Sobre os 40 anos  naquela idade, eu não existia senão aos meu próprios olhos e aos daqueles amigos que deviam por vezes duvidar de mim como eu próprio duvidava. Compreendi que poucos homens se realizam antes de morrar [...] Essa obsessão de uma vida frustrada imobilizava-me o pensamento num ponto, fixava-o como um abcesso. (p. 71)

Era ainda o tempo em que ele (Trajano) não duvidava da vitória, mas, pela primeira vez, sentiu-se esmagado pela imensidade do mundo, o sentimento da idade e dos limites que nos encerram a todos (p. 72)
Quantos velhos obstinados morrem sem testamento. Para eles, trata-se menos de conservar até o fim o seu tesouro ou seu império já meio desligados dos seus dedos entorpecidos, que de se não instalar demasiado cedo no estado póstumo de um homem que já não tem decisões a tomar, surpresas a causar, ameaças ou promessas a fazer aos vivos. (p. 73)

Anima vagula blandula (9-28)



Encontrei de novo num volume da correspondência de Flaubert, muito lido e sublinhado por mim pouco mais ou menos em 1927, a frase inesquecível: «Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem». Uma grande parte da minha vida ia passar-se a definir, depois de escrever, esse homem sozinho e aliás ligado a tudo. (sublinhados meus)

in Apontamentos sobre as Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar (p.225)




É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem.(p.11)

Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado, que acabará por devorar o seu dono. Basta... Amo o meu corpo; serviu-me bem e de todas as maneiras, e não lhe regateio os cuidados necessários. (p.11)


(Velhice, Morte) Este fim tão próximo não é necessariamente imediato (p. 12)


Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite (p.12)


Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo. (p. 13)


(Vida na metáfora da caça) adolescente, a caça ao javali [...] primeiras possibilidades de encontro com o comando e o perigo [...] experiência da morte, da coragem, da piedade pelas criaturas e do prazer trágico de as ver sofrer. Homem feito, a caça repousava-me de muitas lutas secretas com adversários umas vezes demasiado espertos ou demasiado obtusos, outras vezes demasiado fracos ou demasiado fortes para mim. [...] Imperador [...] serviram-me para avaliar a coragem ou os recursos dos altos funcionários [...] Mais tarde [...] fiz das grandes batidas um pretexto de festa, (p,13)


Assim, de cada arte praticada no seu tempo, tiro um conhecimento que me compensa em parte dos prazeres perdidos (p.13)


Empanturrar-se em certos dias de festa foi sempre a ambição, a alegria e o orgulho natural dos pobres. (p.15)


Comer um fruto é fazer entrar em si próprio um belo objecto vivo, estranho, alimentado e favorecido como nós pela terra; é consumar um sacrifício em que nos preferimos às coisas. (p.15)


A carne cozida nas noites das caçadas tinha também essa qualidade quase sacramental [...] a água bebida na concha da mão ou mesmo na nascente faz correr em nós o mais secreto sal da terra e a chuva do céu. (p.16)

Quanto aos escrúpulos religiosos […] nos períodos de jejum ritual, por exemplo, ou no decorrer das iniciações religiosas, conheci as vantagens que têm para o espírito, e os perigos também, as diferentes formas de abstinência ou mesmo de inanição voluntária, esses estádios próximos da vertigem em que o corpo, em parte deslastrado, entra num mundo para o qual não é feito e que prefigura as frias levezas da morte. Noutras ocasiões essas experiências permitiram-me apreciar a ideia do suicídio progressivo, da morte por inanição que foi a de alguns filósofos, espécie de deboche negativo em que se vai até ao esgotamento da substância humana. Mas desagradou-me sempre aderir totalmente a um sistema, e não teria querido que um escrúpulo me roubasse o direito de me empanzinar de salsicharia se por acaso me apetecesse ou se esse alimento fosse o único fácil de obter.

Os cínicos e os moralistas estão de acordo quanto a colocar as voluptuosidades do amor entre os prazeres ditos grosseiros […] Do moralista espero tudo, mas espanta-me que o cínico se engane nesse ponto. Admitamos que uns e outros tenham medo dos seus demónios, quer lhes resistam, quer se lhes abandonem, e se esforcem por aviltar o seu prazer, a fim de lhes tirar o poder quase terrível, ao qual sucumbem, e o seu estranho mistério, em que se sentem perdidos. Acreditaria nesta assimilação do amor às alegrias puramente físicas […] no dia em que visse um apreciador de bons petiscos soluçar de delícia diante do seu rato favorito, como um amante encostado a um ombro juvenil. De todos os nossos jogos é o único que pode perturbar a alma, o único também em que o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. […] a abstinência ou o excesso não aliciam senão o homem só […] o procedimento sensual nos coloca em presença do Outro, nos implica nas exigências e nas servidões da escolha. (p. 17-18)

As palavras enganam, visto que esta – prazer – esconde realidades contraditórias, comporta ao mesmo tempo as noções de tepidez, doçura, intimidade de corpos, e as de violência, agonia e grito. (p. 18)

Amor uma forma de iniciação, um dos pontos em que o secreto e o sagrado se encontram. (p. 18)

o nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, noutros tempos, nos era interdito entrar onde deixamos de nos orientar desde que o ardor se extingue ou que o prazer se desenlaça. (p. 19)

só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. [...] Lucano, tornam-na (a vida) mais pesada e obstruída com uma solenidade que ela não tem. Outros [...] como Petrónio, aligeiram-na, fazem dela uma bola saltitante e vazia, [...] Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo diferente e praticamente quase inabitável. Os filósofos, para poderem estudar a realidade pura, submetem-na quase às mesmas transformações a que o fogo ou o pilão submetem os corpos: coisa alguma de um ser ou de um facto, tal como nós o conhecemos, parece subsistir nesses cristais ou nessas cinzas. Os historiadores apresentam-nos, do passado, sistemas excessivamente completos, séries de causas e efeitos exactos e claros de mais para terem sido alguma vez inteiramente verdadeiros [...] Os narradores, os autores de fábulas milésias, não fazem mais, como os carniceiros, que pendurar no açougue pequenos bocados de carne apreciados pelas moscas. Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não contêm inteira.(p.24)

estes dois processos de conhecimento são difíceis e requerem, um, uma penetração no nosso íntimo, outro, uma saída de nós mesmos. (p. 26)

Mas repugna ao ser humano aceitar-se das mãos do acaso, não ser mais do que o produto passageiro de probabilidades a que nenhum deus preside, nem sobretudo ele próprio […]
passa-se à procura das razões de existir, […] Foi a minha impotência para os descobrir que me fez, por vezes, inclinar para as explicações mágicas, procurar nos delírios do oculto o que o senso comum não me dava. Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros. (p. 28)

RELAÇÕES

relações

Passam os anos e as relações acumulam-se. Vamo-nos dando conta de que estamos mais velhos, mais experientes, melhor preparados e quase sempre mais enriquecidos, através dos laços desenvolvidos. Os amigos da rua, alguns dos quais mudam de casa muito cedo deixando apenas recordações muito ténues que se confundem com a imaginação, os colegas que aprendem connosco a escrever as primeiras palavras, os que se formam ao nosso lado e, claro, os colegas de trabalho. Há pessoas que guardamos a sete chaves, que podem até não ser aquelas que mais conviveram connosco, mas cuja relação foi marcante, por um motivo ou outro, e às vezes até são recordações inadvertidas, resultantes de experiências más, que não conseguimos apagar.

As pessoas ensinam-se mutuamente a agir e reagir. Tornamo-nos mais autênticos, construimos a nossa identidade com base naquilo com que nos identificamos. As 'gentes' são o reflexo mais próximo que temos das nossas próprias acções e, com sorte, é através uns dos outros que acabamos por rejeitar o que nos desagrada e aproveitar o que reconhecemos como sendo bom, que é como quem diz a não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam, por exemplo.

Isto obriga a que nos respeitemos, não a que tenhamos de gostar de toda a gente. Gente que gosta de toda a gente não existe e é patético tentarmos todos ser Medardos Bons* exactamente por não sermos metades, mas inteiros.

É por isso que, sem ressentimentos nem rancores, encolho os ombros à colega que, com voz afectada e melosa, de sorriso fácil e ternurento, se dirige a mim para me pedir os contactos telefónicos para um dia mais tarde, talvez... Sim talvez, respondo com um sorriso amarelo que não consigo disfarçar. Volta-me as costas e regressa ao lugar dela onde ficará por mais uns dias para depois se despedir sem que, estou segura, voltemos a cruzar-nos. Para que raio me interessa o contacto dela se sei que nada em si me aqueceu cá dentro? Aprendi, só. Foi uma relação de aprendizagem humana e não um laço afectivo consistente.

Por isso, muita sorte e tudo de bom no teu caminho que seguirá, certamente, coordenadas diferentes das minhas.

PUBLICADA POR FAVARICA em 7 DE MAIO DE 2009

Faleceu Vasco Granja

Embora estas novas gerações não conheçam Vasco Granja, a verdade é que não se pode ignorar a magia que este homem, durante tantos e tantos anos, colocou nas cabecita dos, então, crianças e jovens deste país.
Eu sou do tempo em que a televisão abria à hora de almoço e só reabria ao fim da tarde. Mas aquele momento do «lápis mágico» era só meu. O que eu adorava! Que prazer que tenho em avivar essas memórias!
Fico feliz porque pude agradecer pessoalmente a este homem toda a alegria e fantasia que me germinou na minha cabecita. Isto passou-se há muitos anos quando me cruzei com ele num pequeno restaurante na zona de Gouveia.
Obrigado

KONIEC

Dia das (des)LIBERDADEs

Celebramos este ano os 35 anos da revolução dos cravos. Com todas as controvérsias muito ao jeito da voracidade da comunicação social, mais uma vez assistimos ao mosaico diversificado do país real. Como um rio que corre a diversas correntes no seu leito, também o 25 de Abril serviu diferentes conveniências.

A par das monótonas e solitárias cerimónias oficiais, da cassete repetitiva da direita que insiste em acusar a revolução de os haver espoliado – que bem os entendemos – e das bernardas da esquerda, retivemos alguns flashes deste Portugal autêntico.

Primeiro, evidenciou-se um avolumar dos que se alhearam completamente da efeméride para se dedicarem ao ócio ou às romarias dos centros comerciais. Outro olhar recaiu nos estóicos que aderem a eventos desportivos e aclamam a revolução. No entanto, este ano, houve dois retratos que ficarão para a posteridade pela persistência de um Portugal que já Eça havia testemunhado. Um retrata o Portugal conservador de aspirações moralistas e que se afirmou em Santa Comba Dão. Todo o seu sucesso deveu-se, claro está, à festarola com comes e bebes «ajuntou povinho como há muito não via» para compor a praça. A outra, com a religiosidade beateira, estendeu-se até à capital do Império Romano, arregimentando o rei, os enjeitados e seus correligionários, dando-lhes mais um precioso momento para aparecerem no boneco.

Ainda graças à canonização de Nuno Álvares Pereira, dizia uma idosa em resposta à avidez de um jornalista: «uns dizem que nasceu aqui, outros que nasceu em Cernache. Não sei, não me recordo, sabe, não é do meu tempo». Estas percepções da intemporalidade dos factos na história caracterizam-nos como portugas. Importante são as sensibilidades arreigadas no subconsciente nacional que têm que «vozeirar», seja pela vox populi, seja pelos emplastros que teimam em dominar os programas de opinião das televisões.

Como denominador comum a todas estas idiossincrasias impõe-se a liberdade ganha com esforço na madrugada de 25 de Abril de 1974, quer eles queiram, quer não.

Educação; para onde nos mandam.

O relatório da OCDE salienta como especialmente positivas as apostas na educação profissionalmente qualificante e na valorização e qualificação da carreira docente.

Por estes tempos, assiste-se à importação das directrizes emanadas pela OCDE, implicando mudanças profundas no ensino em Portugal.

Um olhar mais atento pelas estatísticas e orientações do estudo da OCDE faz ressaltar uma cultura organizada segundo uma lógica marcadamente hierárquica. Os uns mandam e decidem. Os outros obedecem. Estes ideais têm correspondência na nossa política educativa com normativos infalíveis bem urdidos por mentes brilhantes.

Assim, os que mandam escudam-se no seu brilhantismo douto e no sucesso hierárquico, ostentando tiques de prepotência. Aos que obedecem, pedem que executem e sigam procedimentos, se enquadrem em quadros rígidos erigidos e magicamente formulados para satisfazerem um ditadura de estatísticas. Foi segundo esta perspectiva que surgiram a divisão dos professores entre titulares e professores, a avaliação pedagógica com grelhas asfixiantes carregadas de parâmetros inalcançáveis com excelência. E para que nada escape ao big brother, os itens de avaliação organizacionais ficam sob a tutela do director. Perfeito. Quantas manigâncias para subverter o processo ensino-aprendizagem.

De todo este processo ressalta que o professor é o único que nada sabe, pois sobre ele tudo recai de uma forma prescritiva ou punitiva, colando-lhe a culpa do insucesso dos alunos. Senão vejamos. A ministra emana dogmas e os gabinetes ampliam os seus desejos. Tudo inquestionável. Já os alunos detém conhecimentos e saberes que só darão insucesso por culpa da inoperância e incompetência dos professores.

Foi declarado que o insucesso não existe. Os professores tornaram-se um empecilho e há que dotar as escolas de «técnicos da educação». Mas a verdade é incontornável e o tempo bom conselheiro. Muito diferente preparar os jovens para a vida, do que prepará-los para o mercado de trabalho. Para já, há os que proferem discursos e os que diferem. Há os que verborreiam e os que não os entendem. Alguém anda a falar sozinho.

Contra a escola-armazém

Merece toda a atenção a proposta de escola a tempo inteiro (das 7h30 às 19h30?), formulada pela Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap). Percebe-se o ponto de vista dos proponentes: como ambos os progenitores trabalham o dia inteiro, será melhor deixar as crianças na escola do que sozinhas em casa ou sem controlo na rua, porque a escola ainda é um território com relativa segurança. Compreende-se também a dificuldade de muitos pais em assegurarem um transporte dos filhos a horas convenientes, sobretudo nas zonas urbanas: com o trânsito caótico e o patrão a pressionar para que não saiam cedo, será melhor trabalhar um pouco mais e ir buscar os filhos mais tarde.
Ao contrário do que parecia em declarações minhas mal transcritas no PÚBLICO de 7 de Fevereiro, eu não creio à partida que será muito mau para os alunos ficar tanto tempo na escola. Quando citei o filme Paranoid Park, de Gus von Sant, pretendia apenas chamar a atenção para tantas crianças que, na escola e em casa, não conseguem consolidar laços afectivos profundos com adultos, por falta de disponibilidade destes. É que não consigo conceber um desenvolvimento da personalidade sem um conjunto de identificações com figuras de referência, nos diversos territórios onde os mais novos se movem.O meu argumento é outro: não estaremos a remediar à pressa um mal-estar civilizacional, pedindo aos professores (mais uma vez...) que substituam a família? Se os pais têm maus horários, não deveriam reivindicar melhores condições de trabalho, que passassem, por exemplo, pelo encurtamento da hora do almoço, de modo a poderem chegar mais cedo, a tempo de estar com os filhos? Não deveria ser esse um projecto de luta das associações de pais?Importa também reflectir sobre as funções da escola. Temos na cabeça um modelo escolar muito virado para a transmissão concreta de conhecimentos, mas a escola actual é uma segunda casa e os professores, na sua grande maioria, não fazem só a instrução dos alunos, são agentes decisivos para o seu bem-estar: perante a indisponibilidade de muitos pais e face a famílias sem coesão onde não é rara a doença mental, são os promotores (tantas vezes únicos!) das regras de relacionamento interpessoal e dos valores éticos fundamentais para a sobrevivência dos mais novos. Perante o caos ou o vazio de muitas casas, os docentes, tantas vezes sem condições e submersos pela burocracia ministerial, acabam por conseguir guiar os estudantes na compreensão do mundo. A escola já não é, portanto, apenas um local onde se dá instrução, é um território crucial para a socialização e educação (no sentido amplo) dos nossos jovens. Daqui decorre que, como já se pediu muito à escola e aos professores, não se pode pedir mais: é tempo de reflectirmos sobre o que de facto lá se passa, em vez de ampliarmos as funções dos estabelecimentos de ensino, numa direcção desconhecida. Por isso entendo que a proposta de alargar o tempo passado na escola não está no caminho certo, porque arriscamos transformá-la num armazém de crianças, com os pais a pensar cada vez mais na sua vida profissional.A nível da família, constato muitas vezes uma diminuição do prazer dos adultos no convívio com as crianças: vejo pais exaustos, desejosos de que os filhos se deitem depressa, ou pelo menos com esperança de que as diversas amas electrónicas os mantenham em sossego durante muito tempo.
Também aqui se impõe uma reflexão sobre o significado actual da vida em família: para mim, ensinado pela Psicologia e Psiquiatria de que é fundamental a vinculação de uma criança a um adulto seguro e disponível, não faz sentido aceitar que esse desígnio possa alguma vez ser bem substituído por uma instituição como a escola, por melhor que ela seja. Gostaria, pois, que os pais se unissem para reivindicar mais tempo junto dos filhos depois do seu nascimento, que fizessem pressão nas autarquias para a organização de uma rede eficiente de transportes escolares, ou que sensibilizassem o mundo empresarial para horários com a necessária rentabilidade, mas mais compatíveis com a educação dos filhos e com a vida em família.
Aos professores, depois de um ano de grande desgaste emocional, conviria que não aceitassem mais esta "proletarização" do seu desempenho: é que passar filmes para os meninos depois de tantas aulas dadas - como foi sugerido pelos autores da proposta que agora comento - não parece muito gratificante e contribuirá, mais uma vez, para a sua sobrecarga e para a desresponsabilização dos pais.
Daniel SampaioPÚBLICO Comunicação Social SA

Escalada Desportiva

Índice
1 - Historia da escalada desportiva
2 - Modalidades da escalada
3 - Técnicas e modos de escalar
4 - O equipamento
5 - Bibliografia

1. História da escalada desportiva
Ao longo dos anos e de modo a ultrapassar os vários tipos de obstáculos, a escalada foi desenvolvendo as mais variadas técnicas e estilos.
A história da escalada desportiva (em rochas ou paredes artificiais), teve início nos anos 70, quando um senhor teve a ideia de pendurar pedras na sua parede de casa, para na época mais fria poder praticar.
As paredes artificiais surgiram na Europa com o objectivo de substituir a rocha nos períodos mais frios do ano.
Com o surgimento desta modalidade, a vertente competitiva da escalada mudou, em 1985 foi realizado em Itália o primeiro campeonato mundial. Em 1987 foi realizado o primeiro campeonato em parede artificial. Sendo criada a taça do mundo de Escalada Desportiva em 1990, e dois anos mais tarde nas Olimpíadas de Barcelona, foi finalmente consagrada a modalidade; quando foi praticada como demonstração.

2. Modalidades da escalada
Existem muitas modalidades de escalada e neste trabalho apresentam-se algumas para perceberem como a escalada tem muitas vertentes.
Escalada desportiva: esta modalidade é realizada em rocha ou em paredes artificiais e explora as qualidades físicas, técnicas e psicológicas dos praticantes.
Escalada desportiva indoor / parede artificial: esta modalidade é uma simulação de escalada em rocha, a diferença é que aqui o praticante sobe paredes preparadas com agarras/presas, simulando pedaços de pedra. As dificuldades nos movimentos são semelhantes às das rochas naturais.
Escalada em Big Wall: a duração desta modalidade pode ser de vários dias, e é normalmente praticada em grupo. Esta variante pode exigir que o grupo praticante tenha de dormir ancorado nas paredes, utilizando tendas especiais. Alem de tudo este tipo de escalada exige grande técnica de escalada livre e artificial. É sem duvida um desporto para montanhistas mais experientes.
Escalada solo: faz-se sem cordas, arnês ou qualquer outro equipamento de segurança. Esta modalidade é para poucos praticantes, só deve ser executada pelos mais experientes, pois um erro e pode ser fatal.


3. Técnicas e modos de escalar
Escala é conseguir encontrar soluções de progressão eficazes sobre o plano que se estende por cima da nossa cabeças. Pode-se entender este desafio como um jogo de estratégia.
• O objectivo do jogo é encontrar uma solução para chegar ao topo (final da via de escalada);
• Os instrumentos do jogador são as suas capacidades e características tais com a altura, a envergadura, a flexibilidade, a força, a inteligência entre outras;
• A estratégia é adequar as capacidades do praticante às dificuldades impostas pelo obstáculo.
Também já houve quem lhe chamasse o “Bailado Vertical”. O bailado está na eficiência do movimento, progredir da forma mais simples possível e com o mínimo de esforço como se não custasse nada!
A utilização dos pés é a técnica que talvez permite mais facilmente identificar a perícia do participante. Ao escalar deve-se ter a preocupação de procurar sempre bons apoios e, sobre eles, colocar os pés com a maior precisão possível – “como se os pés tivessem olhinhos!”. Depois de bem apoiados deve-se tentar adequar a posição corporal de forma a descarregar sobre eles a maior quantidade do peso, aliviando assim a força exercida pelas mãos e os braços.

4. O equipamento
O equipamento para praticar escalada é:
Arnês: Utiliza-se para unir o corpo do praticante á parede e bem justo;

Cordas dinâmicas: são elásticas de forma a absorver grande parte da energia, para que em caso de uma queda, o corpo não sofra esticões que provoquem lesões na coluna;
Mosquetão: serve para ligar o arnês à corda;
Gri – gri: é um aparelho mecânico criado para dar segurança. Serve para “fazer” subir e descer os praticantes, utilizado em conjunto com as cordas; Oito: serve para provocar atrito na corda. O seu funcionamento é idêntico ao do gri-gri mas não é automático;
Pés-de-gato: sapatos firmes e ajustados aos pés, servem para uma melhor aderência;
Saco de magnésio: serve para transportar o magnésio, para poder ser usado durante a subida, evitando a humidade nas mãos e facilitando a aderência ás paredes;
O capacete: esta protecção é indispensável, pois protege a cabeça do praticante da queda de pequenas pedras ou outros objectos.
Isto é o equipamento necessário para a pratica de escalada com segurança.

5. Bibliografia
Federações de escalada:
http://www.fcmportugal.com/
http://www.uiaa.ch/
Lojas online:
http://www.econauta.com/
http://www.aresta.com/
http://www.barrabes.com/
Bernardo Lopes da Silva Página 1 de 7
11º - Turma 5 - Nº 5