Apontamentos sobre as «Memórias de Adriano» (p. 223-246)

Apesar de tudo, era demasiado nova. Há livros a que só devemos abalançar-nos depois dos quarenta anos. Antes dessa idade corre-se o risco de desconhecer a existência das grandes fronteiras naturais que separam, de pessoa para pessoa, de século para século, a infinita variedade de seres, ou, pelo contrário, de dar exagerada importância às simples divisões administrativas, às formalidades da alfândega ou às guaritas dos postos armados. Foram-me precisos esses anos para aprender a calcular exactamente as distâncias entre o imperador e eu. (p. 227)

este ascetismo e este hedonismo são, em muitos pontos, permutáveis. (p. 227)

A vida das mulheres é limitada demais ou excessivamente secreta. Que uma mulher se conte, e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil pôr qualquer verdade na boca de um homem. (p. 231)

O romance histórico de 1830 cai, é certo, no melodrama e no folhetim de capa e espada [...] No nosso tempo, o romance histórico, ou o que, por comodidade, se consente em designar como tal, só pode ser imerso num tempo, tomada de posse de um mundo interior. (p. 232)

A minha própria existência, se eu quisesse escrevê-la, seria reconstituída por mim, de fora, penosamente, como a de outra pessoa; teria que recorrer a cartas, a lembranças de outrem, para fixar essas flutuantes memórias. Nunca são mais que paredes desmoronadas, divisórias de sombras (p. 233)

Interdizer a si mesmo as sombras projectadas; não permitir que o bafo de um hálito se estenda sobre o aço do espelho; aproveitar somente o que há de mais duradouro, de mais essencial em nós, nas emoções dos sentidos ou nas operações do espírito, como ponto de contacto com aqueles homens que como nós trincaram azeitonas, beberam vinho, bezuntaram os dedos de mel, lutaram contra o vento agreste e a chuva que cega, ou procuraram no Verão a sombra do plátano, e gozaram, e pensaram, e envelheceram, e morreram. (p. 234)

A substância, a estrutura humana não mudam. Nada mais estável que a curva de um tornozelo, o lugar de um tendão ou a forma do dedo de um pé. Mas há épocas em que o calçado deforma menos. No século de que falo, estamos ainda muito perto da livre verdade do pé nu. (p. 234)

O próprio Antínoo só pode avistar-se por refracção, através das recordações do imperador, quer dizer, com uma minúcia apaixonada e alguns erros. (p. 236)

Apercebi-me rapidamente de que escrevia a vida de um grande homem. Daí, maior respeito pela verdade, mais atenção e, quanto a mim, maior silêncio. (p. 240)

Todo o ser que viveu a aventura humana fui eu. (p. 241)

Este século II interessa-me porque foi, durante muito tempo, o dos últimos homens livres. Pelo que nos diz respeito, estamos talvez já muito distantes desse tempo. (p. 241)

a fidelidade aos facto aumenta fortemente o seu valor humano (p. 247)

1 comentário:

Anónimo disse...

Ensina pois. Mas também pode ter o efeito contrário, depende dos dias :)

Espero que as férias estejam a correr bem, professor Luís, um beijo da "Chocolate à chuva"