Livro três – Revelações e Regressos (221-294)

A despedida (221-240)

A serpente não é um animal: é um músculo com dentes, uma despernada centopeia com a barriga no meio do pescoço. Como podia Silvestre Vitalício estar de namoros com tão rasteiro animal? […] E explicou-se: aquela cobra não era senão o Tempo. Durante anos ele tinha resistido contra os arremedos da serpente. Esta noite cedera, desistido (223)

O veneno percorreu-lhe antecipadamente as entranhas e o Tempo começou a apodrecer dentro do seu corpo. - O Tempo é um veneno, Mwanito,. Mais eu lembro, menos fico vivo. […] só existe um verdadeiro suicídio: deixar de ter nome, perder entendimento de si e dos outros. Ficar fora do alcance das palavras e das alheias memórias. (224)

É a solidão que mais tememos na morte. (227)

Em criança não nos despedimos dos lugares. Pensamos que voltamos sempre. Acreditamos que nunca é a última vez. (229)

Ao iniciar esta viagem eu deixara de ser criança. Mwanito ficara em Jesusalém, e eu carecia de um novo nome, um novo baptismo. […] pela primeira vez não me bastava ver o mundo. Eu queria, agora, ver o modo como olhava o mundo. (230)

[Marta] Ao participar daquele fingimento de fim de mundo, ela aprendera a morte sem luto, a partida sem despedida. (236)

- Você, meu filho, nasceu com um coração grande. Com esse coração, você não é capaz de odiar. E este mundo, para ser amado, precisa de muito ódio. […] Jesusalém lhe dera o esquecimento. O veneno da serpente lhe trouxera o tempo. A cidade lhe causara cegueira. (237)

Uma bala vem à baila (241-252)

A verdade era: a mulher me invadira como o Sol enche as nossas casas. Não havia modo de afastar ou impedir essa inundação, não havia cortinado que fechasse aquela luminosidade. (244)

Sem que ninguém mais dessa conta, as palavras de Vitalício subiam ao céu. Era um céu rasteiro, sem fôlego. Mas era o início de um infinito. (247)

A árvore imóvel (253- 266)

Não foi um continente que engoliu Marcelo. Foram os seus demónios interiores que o devoraram. (254)

A vida só sucede quando deixamos de a entender. […] Nunca me imaginei viajando para África. Agora, não sei como regressar à Europa. Quero voltar para Lisboa, sim, mas sem memória de alguma vez já ter vivido. Não, não me apetece reconhecer nem gente, nem lugares, nem sequer a língua que nos dá acesso aos outros. (254)

se temos de viver na mentira que seja na nossa própria mentira. […] o mundo termina quando já não somos capazes de o amar. […] a vida não foi feita para ser pouca e breve. E o mundo não foi feito para ter medida. […] as palavras podem ser o arco que liga a Morte e a Vida. (255)

a minha única morte foi a de Marcelo. Essa, sim, foi o primeiro desfecho definitivo. Não sei se Marcelo foi o amor da minha vida. Mas foi uma vida inteira de amor. Quem ama, ama para sempre. Nunca faças nada para sempre. Excepto amar. (256)

Dordalma saiu […] para ser olhada e invejada. O vestido era de cegar um mortal e o decote era de fazer um cego ver o céu. […] Era ela toda inteira. Em casa, Dordalma nunca era mais do que cinza, apagada e fria. […] saiu de casa para, vestida para semear devaneios. […] E suspiravam de inveja, as mulheres; de desejo, os homens. Raiavam nas pupilas dos machos as mesmas dilatadas veias que enchem os olhos dos predadores. […] Nessa manhã tua mãe entrou no chapa-cem e espremeu-se ente os homens que enchiam a viatura. (256-257)

A verdade é que, de acordo com as esquivas testemunhas, Dordalma foi arremessada ao solo, entre babas e grunhidos, apetites de feras e raivas de bicho. E ela foi-se afundando na areia como se nada mais protegesse o seu frágil e trémulo corpo. Um por um, os homens serviram-se

[…]

Mais tarde, o teu silêncio, Mwanito, foi a sua defesa contra esse eco recriminador. (257- 260)

Suicídio de mulher casada é o vexame maior para qualquer marido. […] perdida a posse da sua própria vida, ela atirara na cara do teu pai o espectáculo da sua própria morte. (261)

Agora sabes por que razão Ntundi partiu com Kalash […] por que motivo Silvestre temia o vento e a dança das árvores evocando fantasmas. Gora sabes dos motivos de Jesusalém e do exílio dos Venturas fora do mundo. […] Para Silvestre o passado era uma doença e as lembranças um castigo. Ele queria morar no esquecimento. Ele queria viver longe da culpa. (263)

- Nós mulheres. Por que acreditamos tanto, tudo?

- Porque temos medo.

O nosso medo maior é o da solidão. Uma mulher não pode existir sozinha, sob o risco de deixar de ser mulher. Ou se converte, para tranquilidade de todos, numa outra coisa: numa louca, numa velha, numa feiticeira. Ou, como diria Silvestre, numa puta. Tudo menos mulher. (264)

O livro (267- 294)

Desde então, Noci passou a acontecer como a Lua. Visível apenas em estações do mês. E eu passei a suceder por marés, sazonalmente me inundando de mulher. (275)

- Quem te ensinou a amar as mulheres?

Devia ter respondido: foi a falta de amor. (277)

Tememos a morte, sim. Mas nenhum medo é maior que aquele que sentimos da vida cheia, da vida vivida a todo o peito. (286)

[Silvestre Vitalício] A fronteira entre Jesusalém e a cidade não foi nunca traçada pela distância. O medo e a culpa foram a única fronteira. […] O medo me fez viver, recatado e pequeno. A culpa me fez fugir de mim, desabitado de memórias. […] Só esse Deus me aliviaria de um castigo que a mim mesmo me havia imposto. Contudo, só agora eu entendi: meus dois filhos, só eles me podem trazer esse perdão. (293)

A ternura daquela mulher [Noci] me confirmava que meu estava errado: o mundo não morreu. Afinal, o mundo nunca chegou a nascer. Quem sabe eu aprenda, no afinado silêncio dos braços de Noci, a encontrar a minha mãe caminhando por um infinito descampado antes de chegar à última árvore. (294)