Dia das (des)LIBERDADEs

Celebramos este ano os 35 anos da revolução dos cravos. Com todas as controvérsias muito ao jeito da voracidade da comunicação social, mais uma vez assistimos ao mosaico diversificado do país real. Como um rio que corre a diversas correntes no seu leito, também o 25 de Abril serviu diferentes conveniências.

A par das monótonas e solitárias cerimónias oficiais, da cassete repetitiva da direita que insiste em acusar a revolução de os haver espoliado – que bem os entendemos – e das bernardas da esquerda, retivemos alguns flashes deste Portugal autêntico.

Primeiro, evidenciou-se um avolumar dos que se alhearam completamente da efeméride para se dedicarem ao ócio ou às romarias dos centros comerciais. Outro olhar recaiu nos estóicos que aderem a eventos desportivos e aclamam a revolução. No entanto, este ano, houve dois retratos que ficarão para a posteridade pela persistência de um Portugal que já Eça havia testemunhado. Um retrata o Portugal conservador de aspirações moralistas e que se afirmou em Santa Comba Dão. Todo o seu sucesso deveu-se, claro está, à festarola com comes e bebes «ajuntou povinho como há muito não via» para compor a praça. A outra, com a religiosidade beateira, estendeu-se até à capital do Império Romano, arregimentando o rei, os enjeitados e seus correligionários, dando-lhes mais um precioso momento para aparecerem no boneco.

Ainda graças à canonização de Nuno Álvares Pereira, dizia uma idosa em resposta à avidez de um jornalista: «uns dizem que nasceu aqui, outros que nasceu em Cernache. Não sei, não me recordo, sabe, não é do meu tempo». Estas percepções da intemporalidade dos factos na história caracterizam-nos como portugas. Importante são as sensibilidades arreigadas no subconsciente nacional que têm que «vozeirar», seja pela vox populi, seja pelos emplastros que teimam em dominar os programas de opinião das televisões.

Como denominador comum a todas estas idiossincrasias impõe-se a liberdade ganha com esforço na madrugada de 25 de Abril de 1974, quer eles queiram, quer não.

Educação; para onde nos mandam.

O relatório da OCDE salienta como especialmente positivas as apostas na educação profissionalmente qualificante e na valorização e qualificação da carreira docente.

Por estes tempos, assiste-se à importação das directrizes emanadas pela OCDE, implicando mudanças profundas no ensino em Portugal.

Um olhar mais atento pelas estatísticas e orientações do estudo da OCDE faz ressaltar uma cultura organizada segundo uma lógica marcadamente hierárquica. Os uns mandam e decidem. Os outros obedecem. Estes ideais têm correspondência na nossa política educativa com normativos infalíveis bem urdidos por mentes brilhantes.

Assim, os que mandam escudam-se no seu brilhantismo douto e no sucesso hierárquico, ostentando tiques de prepotência. Aos que obedecem, pedem que executem e sigam procedimentos, se enquadrem em quadros rígidos erigidos e magicamente formulados para satisfazerem um ditadura de estatísticas. Foi segundo esta perspectiva que surgiram a divisão dos professores entre titulares e professores, a avaliação pedagógica com grelhas asfixiantes carregadas de parâmetros inalcançáveis com excelência. E para que nada escape ao big brother, os itens de avaliação organizacionais ficam sob a tutela do director. Perfeito. Quantas manigâncias para subverter o processo ensino-aprendizagem.

De todo este processo ressalta que o professor é o único que nada sabe, pois sobre ele tudo recai de uma forma prescritiva ou punitiva, colando-lhe a culpa do insucesso dos alunos. Senão vejamos. A ministra emana dogmas e os gabinetes ampliam os seus desejos. Tudo inquestionável. Já os alunos detém conhecimentos e saberes que só darão insucesso por culpa da inoperância e incompetência dos professores.

Foi declarado que o insucesso não existe. Os professores tornaram-se um empecilho e há que dotar as escolas de «técnicos da educação». Mas a verdade é incontornável e o tempo bom conselheiro. Muito diferente preparar os jovens para a vida, do que prepará-los para o mercado de trabalho. Para já, há os que proferem discursos e os que diferem. Há os que verborreiam e os que não os entendem. Alguém anda a falar sozinho.

Contra a escola-armazém

Merece toda a atenção a proposta de escola a tempo inteiro (das 7h30 às 19h30?), formulada pela Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap). Percebe-se o ponto de vista dos proponentes: como ambos os progenitores trabalham o dia inteiro, será melhor deixar as crianças na escola do que sozinhas em casa ou sem controlo na rua, porque a escola ainda é um território com relativa segurança. Compreende-se também a dificuldade de muitos pais em assegurarem um transporte dos filhos a horas convenientes, sobretudo nas zonas urbanas: com o trânsito caótico e o patrão a pressionar para que não saiam cedo, será melhor trabalhar um pouco mais e ir buscar os filhos mais tarde.
Ao contrário do que parecia em declarações minhas mal transcritas no PÚBLICO de 7 de Fevereiro, eu não creio à partida que será muito mau para os alunos ficar tanto tempo na escola. Quando citei o filme Paranoid Park, de Gus von Sant, pretendia apenas chamar a atenção para tantas crianças que, na escola e em casa, não conseguem consolidar laços afectivos profundos com adultos, por falta de disponibilidade destes. É que não consigo conceber um desenvolvimento da personalidade sem um conjunto de identificações com figuras de referência, nos diversos territórios onde os mais novos se movem.O meu argumento é outro: não estaremos a remediar à pressa um mal-estar civilizacional, pedindo aos professores (mais uma vez...) que substituam a família? Se os pais têm maus horários, não deveriam reivindicar melhores condições de trabalho, que passassem, por exemplo, pelo encurtamento da hora do almoço, de modo a poderem chegar mais cedo, a tempo de estar com os filhos? Não deveria ser esse um projecto de luta das associações de pais?Importa também reflectir sobre as funções da escola. Temos na cabeça um modelo escolar muito virado para a transmissão concreta de conhecimentos, mas a escola actual é uma segunda casa e os professores, na sua grande maioria, não fazem só a instrução dos alunos, são agentes decisivos para o seu bem-estar: perante a indisponibilidade de muitos pais e face a famílias sem coesão onde não é rara a doença mental, são os promotores (tantas vezes únicos!) das regras de relacionamento interpessoal e dos valores éticos fundamentais para a sobrevivência dos mais novos. Perante o caos ou o vazio de muitas casas, os docentes, tantas vezes sem condições e submersos pela burocracia ministerial, acabam por conseguir guiar os estudantes na compreensão do mundo. A escola já não é, portanto, apenas um local onde se dá instrução, é um território crucial para a socialização e educação (no sentido amplo) dos nossos jovens. Daqui decorre que, como já se pediu muito à escola e aos professores, não se pode pedir mais: é tempo de reflectirmos sobre o que de facto lá se passa, em vez de ampliarmos as funções dos estabelecimentos de ensino, numa direcção desconhecida. Por isso entendo que a proposta de alargar o tempo passado na escola não está no caminho certo, porque arriscamos transformá-la num armazém de crianças, com os pais a pensar cada vez mais na sua vida profissional.A nível da família, constato muitas vezes uma diminuição do prazer dos adultos no convívio com as crianças: vejo pais exaustos, desejosos de que os filhos se deitem depressa, ou pelo menos com esperança de que as diversas amas electrónicas os mantenham em sossego durante muito tempo.
Também aqui se impõe uma reflexão sobre o significado actual da vida em família: para mim, ensinado pela Psicologia e Psiquiatria de que é fundamental a vinculação de uma criança a um adulto seguro e disponível, não faz sentido aceitar que esse desígnio possa alguma vez ser bem substituído por uma instituição como a escola, por melhor que ela seja. Gostaria, pois, que os pais se unissem para reivindicar mais tempo junto dos filhos depois do seu nascimento, que fizessem pressão nas autarquias para a organização de uma rede eficiente de transportes escolares, ou que sensibilizassem o mundo empresarial para horários com a necessária rentabilidade, mas mais compatíveis com a educação dos filhos e com a vida em família.
Aos professores, depois de um ano de grande desgaste emocional, conviria que não aceitassem mais esta "proletarização" do seu desempenho: é que passar filmes para os meninos depois de tantas aulas dadas - como foi sugerido pelos autores da proposta que agora comento - não parece muito gratificante e contribuirá, mais uma vez, para a sua sobrecarga e para a desresponsabilização dos pais.
Daniel SampaioPÚBLICO Comunicação Social SA