Encontrei de novo num volume da correspondência de Flaubert, muito lido e sublinhado por mim pouco mais ou menos em 1927, a frase inesquecível: «Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem». Uma grande parte da minha vida ia passar-se a definir, depois de escrever, esse homem sozinho e aliás ligado a tudo. (sublinhados meus)
in Apontamentos sobre as Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar (p.225)
É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem.(p.11)
Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado, que acabará por devorar o seu dono. Basta... Amo o meu corpo; serviu-me bem e de todas as maneiras, e não lhe regateio os cuidados necessários. (p.11)
(Velhice, Morte) Este fim tão próximo não é necessariamente imediato (p. 12)
Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite (p.12)
Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo. (p. 13)
(Vida na metáfora da caça) adolescente, a caça ao javali [...] primeiras possibilidades de encontro com o comando e o perigo [...] experiência da morte, da coragem, da piedade pelas criaturas e do prazer trágico de as ver sofrer. Homem feito, a caça repousava-me de muitas lutas secretas com adversários umas vezes demasiado espertos ou demasiado obtusos, outras vezes demasiado fracos ou demasiado fortes para mim. [...] Imperador [...] serviram-me para avaliar a coragem ou os recursos dos altos funcionários [...] Mais tarde [...] fiz das grandes batidas um pretexto de festa, (p,13)
Assim, de cada arte praticada no seu tempo, tiro um conhecimento que me compensa em parte dos prazeres perdidos (p.13)
Empanturrar-se em certos dias de festa foi sempre a ambição, a alegria e o orgulho natural dos pobres. (p.15)
Comer um fruto é fazer entrar em si próprio um belo objecto vivo, estranho, alimentado e favorecido como nós pela terra; é consumar um sacrifício em que nos preferimos às coisas. (p.15)
A carne cozida nas noites das caçadas tinha também essa qualidade quase sacramental [...] a água bebida na concha da mão ou mesmo na nascente faz correr em nós o mais secreto sal da terra e a chuva do céu. (p.16)
Quanto aos escrúpulos religiosos […] nos períodos de jejum ritual, por exemplo, ou no decorrer das iniciações religiosas, conheci as vantagens que têm para o espírito, e os perigos também, as diferentes formas de abstinência ou mesmo de inanição voluntária, esses estádios próximos da vertigem em que o corpo, em parte deslastrado, entra num mundo para o qual não é feito e que prefigura as frias levezas da morte. Noutras ocasiões essas experiências permitiram-me apreciar a ideia do suicídio progressivo, da morte por inanição que foi a de alguns filósofos, espécie de deboche negativo em que se vai até ao esgotamento da substância humana. Mas desagradou-me sempre aderir totalmente a um sistema, e não teria querido que um escrúpulo me roubasse o direito de me empanzinar de salsicharia se por acaso me apetecesse ou se esse alimento fosse o único fácil de obter.
Os cínicos e os moralistas estão de acordo quanto a colocar as voluptuosidades do amor entre os prazeres ditos grosseiros […] Do moralista espero tudo, mas espanta-me que o cínico se engane nesse ponto. Admitamos que uns e outros tenham medo dos seus demónios, quer lhes resistam, quer se lhes abandonem, e se esforcem por aviltar o seu prazer, a fim de lhes tirar o poder quase terrível, ao qual sucumbem, e o seu estranho mistério, em que se sentem perdidos. Acreditaria nesta assimilação do amor às alegrias puramente físicas […] no dia em que visse um apreciador de bons petiscos soluçar de delícia diante do seu rato favorito, como um amante encostado a um ombro juvenil. De todos os nossos jogos é o único que pode perturbar a alma, o único também em que o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. […] a abstinência ou o excesso não aliciam senão o homem só […] o procedimento sensual nos coloca em presença do Outro, nos implica nas exigências e nas servidões da escolha. (p. 17-18)
As palavras enganam, visto que esta – prazer – esconde realidades contraditórias, comporta ao mesmo tempo as noções de tepidez, doçura, intimidade de corpos, e as de violência, agonia e grito. (p. 18)
Amor uma forma de iniciação, um dos pontos em que o secreto e o sagrado se encontram. (p. 18)
o nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, noutros tempos, nos era interdito entrar onde deixamos de nos orientar desde que o ardor se extingue ou que o prazer se desenlaça. (p. 19)
só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. [...] Lucano, tornam-na (a vida) mais pesada e obstruída com uma solenidade que ela não tem. Outros [...] como Petrónio, aligeiram-na, fazem dela uma bola saltitante e vazia, [...] Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo diferente e praticamente quase inabitável. Os filósofos, para poderem estudar a realidade pura, submetem-na quase às mesmas transformações a que o fogo ou o pilão submetem os corpos: coisa alguma de um ser ou de um facto, tal como nós o conhecemos, parece subsistir nesses cristais ou nessas cinzas. Os historiadores apresentam-nos, do passado, sistemas excessivamente completos, séries de causas e efeitos exactos e claros de mais para terem sido alguma vez inteiramente verdadeiros [...] Os narradores, os autores de fábulas milésias, não fazem mais, como os carniceiros, que pendurar no açougue pequenos bocados de carne apreciados pelas moscas. Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não contêm inteira.(p.24)
estes dois processos de conhecimento são difíceis e requerem, um, uma penetração no nosso íntimo, outro, uma saída de nós mesmos. (p. 26)
Mas repugna ao ser humano aceitar-se das mãos do acaso, não ser mais do que o produto passageiro de probabilidades a que nenhum deus preside, nem sobretudo ele próprio […]
passa-se à procura das razões de existir, […] Foi a minha impotência para os descobrir que me fez, por vezes, inclinar para as explicações mágicas, procurar nos delírios do oculto o que o senso comum não me dava. Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros. (p. 28)