Varius multiplex multiformis (29-76)

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros. Em menor escala, as escolas. (p. 34)

os magísteres exerciam sobre os discípulos uma tirania que eu teria envergonhado de impor aos homens; cada um, encerrado nos estreitos limites do seu saber, desprezava os colegas que, tão estreitamentecomo eles, sabiam outra coisa. (p. 34)

Ensinaram-me a entrar alternadamente no pensamento de cada homem, a compreender que cada um se decide, vive e morre segundo as suas próprias leis. (p. 34)

Leotíquido [...] ensinou-me as preferir as coisas às palavras, a desconfiar das fórmulas, a observar de preferência a julgar. Este grego ensinou-me o método. (p. 36)

Pertencia a esse tipo de espíritos, tão raros, que, possuindo a fundo uma especialidade, vendo-a por assim dizer de dentro e de um ponto de vista inacessível aos profanos, conservam contudo o sentido do valor relativo na ordem das coisas e a medem em termos humanos. [...] nunca hesitava perante inovações úteis. (p. 38)

Há poucos a quem não possa ensinar-se convenientemente alguma coisa. O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem, e desinteressarmo-nos precisamente de cultivar todas aquelas que ele possui. (p. 40)

Serviano deveria ter compreendido que se não impede tão facilmente um homem resoluto de continuar o seu caminho, a não ser que se vá até o assassinato. (p. 46)

(Trajano, imperador romano) Tinha encarado as minhas loucuras de rapaz com uma indignação que não era absolutamente injustificada, mas que só se encontra em família; as minhas dívidas escandalizavam-no, aliás, muito mais que os meus desatinos. Outros traços meus o inquietavam; pouco culto, tinha pelos filósofos e pelos letrados um respeito comovente, mas admirar de longe os grandes filósofos é uma coisa e ter a seu lado um jovem tenente com demasiado verniz de literatura é outra. Não sabendo onde se situavam os meus princípios, os meus limites, os meus travões, supunha-me desprovido e sem recursos contra mim mesmo. (p. 46-47)

a maior parte das minhas pretensas proezas não passava de bravatas inúteis [...] misturado com a exaltação quase sagrada [...] o meu baixo desejo de agradar fosse por que preço fosse e de chamar a atenção sobre mim. (p. 49)

Um ser embriagado de vida não prevê a morte; ela não existe; ele nega-a em cada um dos seus gestos [...] ela não é para ele mais que um choque ou um espasmo (p. 49)

Trajano enfiou-me no dedo o anel de diamantes que ele recebera de Nera e que continuava a ser mais ou menos o sinal da sucessão no poder. Nessa noite adormeci contente. (p. 50)

Havia perdido uma grande parte do meu ignóbil medo de desagradar [...] o meu tempo de braceletes e perfumes tinha passado. (p. 51)


sozinho no meu quarto, ensaiando os meus efeitos diante de um espelho, sentia-me um imperador (p. 52)

Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano. (p. 55)

Sobre a mulher velha Reencontava o círculo estreito das mulheres, o seu duro sentido prático e o seu céu cinzento desde que o amor já lhe não dá esplendor (p.55)

Previa o futuro com bastante exactidão, coisa possível, aliás, quando se está informado acerca de um bom número de elementos relativos ao presente (p.67)

Sobre Plotina  A amizade era para ela uma eleição em que se empenhava por completo, entregava-se-lhe absolutamente [...] A intimidade dos corpos, que nunca existiu entre nós, foi compensada pelo contacto de dois espíritos estritamente identificados um com o outro (p. 68)

As minhas apreensões subsistiam, mas eu dissimulava-as como se fossem crimes; ter razão cedo demais é errar. (p. 69)

Os Judeus e os Árabes tinham desde o princípio feito causa comum contra uma guerra que ameaçava arruinar o seu negócio; mas Israel aproveitava-se disso para se lançar contra um mundo de que era excluído pelos seus furores religiosos, os seus ritos singulares e a intransigência do seu Deus (p. 70)

Sobre os 40 anos  naquela idade, eu não existia senão aos meu próprios olhos e aos daqueles amigos que deviam por vezes duvidar de mim como eu próprio duvidava. Compreendi que poucos homens se realizam antes de morrar [...] Essa obsessão de uma vida frustrada imobilizava-me o pensamento num ponto, fixava-o como um abcesso. (p. 71)

Era ainda o tempo em que ele (Trajano) não duvidava da vitória, mas, pela primeira vez, sentiu-se esmagado pela imensidade do mundo, o sentimento da idade e dos limites que nos encerram a todos (p. 72)
Quantos velhos obstinados morrem sem testamento. Para eles, trata-se menos de conservar até o fim o seu tesouro ou seu império já meio desligados dos seus dedos entorpecidos, que de se não instalar demasiado cedo no estado póstumo de um homem que já não tem decisões a tomar, surpresas a causar, ameaças ou promessas a fazer aos vivos. (p. 73)

Anima vagula blandula (9-28)



Encontrei de novo num volume da correspondência de Flaubert, muito lido e sublinhado por mim pouco mais ou menos em 1927, a frase inesquecível: «Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem». Uma grande parte da minha vida ia passar-se a definir, depois de escrever, esse homem sozinho e aliás ligado a tudo. (sublinhados meus)

in Apontamentos sobre as Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar (p.225)




É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem.(p.11)

Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado, que acabará por devorar o seu dono. Basta... Amo o meu corpo; serviu-me bem e de todas as maneiras, e não lhe regateio os cuidados necessários. (p.11)


(Velhice, Morte) Este fim tão próximo não é necessariamente imediato (p. 12)


Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite (p.12)


Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo. (p. 13)


(Vida na metáfora da caça) adolescente, a caça ao javali [...] primeiras possibilidades de encontro com o comando e o perigo [...] experiência da morte, da coragem, da piedade pelas criaturas e do prazer trágico de as ver sofrer. Homem feito, a caça repousava-me de muitas lutas secretas com adversários umas vezes demasiado espertos ou demasiado obtusos, outras vezes demasiado fracos ou demasiado fortes para mim. [...] Imperador [...] serviram-me para avaliar a coragem ou os recursos dos altos funcionários [...] Mais tarde [...] fiz das grandes batidas um pretexto de festa, (p,13)


Assim, de cada arte praticada no seu tempo, tiro um conhecimento que me compensa em parte dos prazeres perdidos (p.13)


Empanturrar-se em certos dias de festa foi sempre a ambição, a alegria e o orgulho natural dos pobres. (p.15)


Comer um fruto é fazer entrar em si próprio um belo objecto vivo, estranho, alimentado e favorecido como nós pela terra; é consumar um sacrifício em que nos preferimos às coisas. (p.15)


A carne cozida nas noites das caçadas tinha também essa qualidade quase sacramental [...] a água bebida na concha da mão ou mesmo na nascente faz correr em nós o mais secreto sal da terra e a chuva do céu. (p.16)

Quanto aos escrúpulos religiosos […] nos períodos de jejum ritual, por exemplo, ou no decorrer das iniciações religiosas, conheci as vantagens que têm para o espírito, e os perigos também, as diferentes formas de abstinência ou mesmo de inanição voluntária, esses estádios próximos da vertigem em que o corpo, em parte deslastrado, entra num mundo para o qual não é feito e que prefigura as frias levezas da morte. Noutras ocasiões essas experiências permitiram-me apreciar a ideia do suicídio progressivo, da morte por inanição que foi a de alguns filósofos, espécie de deboche negativo em que se vai até ao esgotamento da substância humana. Mas desagradou-me sempre aderir totalmente a um sistema, e não teria querido que um escrúpulo me roubasse o direito de me empanzinar de salsicharia se por acaso me apetecesse ou se esse alimento fosse o único fácil de obter.

Os cínicos e os moralistas estão de acordo quanto a colocar as voluptuosidades do amor entre os prazeres ditos grosseiros […] Do moralista espero tudo, mas espanta-me que o cínico se engane nesse ponto. Admitamos que uns e outros tenham medo dos seus demónios, quer lhes resistam, quer se lhes abandonem, e se esforcem por aviltar o seu prazer, a fim de lhes tirar o poder quase terrível, ao qual sucumbem, e o seu estranho mistério, em que se sentem perdidos. Acreditaria nesta assimilação do amor às alegrias puramente físicas […] no dia em que visse um apreciador de bons petiscos soluçar de delícia diante do seu rato favorito, como um amante encostado a um ombro juvenil. De todos os nossos jogos é o único que pode perturbar a alma, o único também em que o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. […] a abstinência ou o excesso não aliciam senão o homem só […] o procedimento sensual nos coloca em presença do Outro, nos implica nas exigências e nas servidões da escolha. (p. 17-18)

As palavras enganam, visto que esta – prazer – esconde realidades contraditórias, comporta ao mesmo tempo as noções de tepidez, doçura, intimidade de corpos, e as de violência, agonia e grito. (p. 18)

Amor uma forma de iniciação, um dos pontos em que o secreto e o sagrado se encontram. (p. 18)

o nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, noutros tempos, nos era interdito entrar onde deixamos de nos orientar desde que o ardor se extingue ou que o prazer se desenlaça. (p. 19)

só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. [...] Lucano, tornam-na (a vida) mais pesada e obstruída com uma solenidade que ela não tem. Outros [...] como Petrónio, aligeiram-na, fazem dela uma bola saltitante e vazia, [...] Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo diferente e praticamente quase inabitável. Os filósofos, para poderem estudar a realidade pura, submetem-na quase às mesmas transformações a que o fogo ou o pilão submetem os corpos: coisa alguma de um ser ou de um facto, tal como nós o conhecemos, parece subsistir nesses cristais ou nessas cinzas. Os historiadores apresentam-nos, do passado, sistemas excessivamente completos, séries de causas e efeitos exactos e claros de mais para terem sido alguma vez inteiramente verdadeiros [...] Os narradores, os autores de fábulas milésias, não fazem mais, como os carniceiros, que pendurar no açougue pequenos bocados de carne apreciados pelas moscas. Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não contêm inteira.(p.24)

estes dois processos de conhecimento são difíceis e requerem, um, uma penetração no nosso íntimo, outro, uma saída de nós mesmos. (p. 26)

Mas repugna ao ser humano aceitar-se das mãos do acaso, não ser mais do que o produto passageiro de probabilidades a que nenhum deus preside, nem sobretudo ele próprio […]
passa-se à procura das razões de existir, […] Foi a minha impotência para os descobrir que me fez, por vezes, inclinar para as explicações mágicas, procurar nos delírios do oculto o que o senso comum não me dava. Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros. (p. 28)

RELAÇÕES

relações

Passam os anos e as relações acumulam-se. Vamo-nos dando conta de que estamos mais velhos, mais experientes, melhor preparados e quase sempre mais enriquecidos, através dos laços desenvolvidos. Os amigos da rua, alguns dos quais mudam de casa muito cedo deixando apenas recordações muito ténues que se confundem com a imaginação, os colegas que aprendem connosco a escrever as primeiras palavras, os que se formam ao nosso lado e, claro, os colegas de trabalho. Há pessoas que guardamos a sete chaves, que podem até não ser aquelas que mais conviveram connosco, mas cuja relação foi marcante, por um motivo ou outro, e às vezes até são recordações inadvertidas, resultantes de experiências más, que não conseguimos apagar.

As pessoas ensinam-se mutuamente a agir e reagir. Tornamo-nos mais autênticos, construimos a nossa identidade com base naquilo com que nos identificamos. As 'gentes' são o reflexo mais próximo que temos das nossas próprias acções e, com sorte, é através uns dos outros que acabamos por rejeitar o que nos desagrada e aproveitar o que reconhecemos como sendo bom, que é como quem diz a não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam, por exemplo.

Isto obriga a que nos respeitemos, não a que tenhamos de gostar de toda a gente. Gente que gosta de toda a gente não existe e é patético tentarmos todos ser Medardos Bons* exactamente por não sermos metades, mas inteiros.

É por isso que, sem ressentimentos nem rancores, encolho os ombros à colega que, com voz afectada e melosa, de sorriso fácil e ternurento, se dirige a mim para me pedir os contactos telefónicos para um dia mais tarde, talvez... Sim talvez, respondo com um sorriso amarelo que não consigo disfarçar. Volta-me as costas e regressa ao lugar dela onde ficará por mais uns dias para depois se despedir sem que, estou segura, voltemos a cruzar-nos. Para que raio me interessa o contacto dela se sei que nada em si me aqueceu cá dentro? Aprendi, só. Foi uma relação de aprendizagem humana e não um laço afectivo consistente.

Por isso, muita sorte e tudo de bom no teu caminho que seguirá, certamente, coordenadas diferentes das minhas.

PUBLICADA POR FAVARICA em 7 DE MAIO DE 2009

Faleceu Vasco Granja

Embora estas novas gerações não conheçam Vasco Granja, a verdade é que não se pode ignorar a magia que este homem, durante tantos e tantos anos, colocou nas cabecita dos, então, crianças e jovens deste país.
Eu sou do tempo em que a televisão abria à hora de almoço e só reabria ao fim da tarde. Mas aquele momento do «lápis mágico» era só meu. O que eu adorava! Que prazer que tenho em avivar essas memórias!
Fico feliz porque pude agradecer pessoalmente a este homem toda a alegria e fantasia que me germinou na minha cabecita. Isto passou-se há muitos anos quando me cruzei com ele num pequeno restaurante na zona de Gouveia.
Obrigado

KONIEC