Saramago começou a viver!


José de Sousa Saramago nasceu em Azinhaga, Golegã, em 1922. Faleceu em 2010 na ilha de Lanzarote. Filiado e militante activo do P.C.P. foi escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português.

Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.
A sua obra: «Memorial do convento» é a mais conhecida e faz parte do programa de estudos do 12º ano.
«“Com José Saramago”, diz Carlos Reis, desaparece não apenas um grande escritor português, mas sobretudo um enorme escritor universal”. No entanto, acrescenta, “fica connosco um universo: esse que Saramago criou, feito de uma visão subversiva da História e dos seus protagonistas, dos mitos estabelecidos e das imagens estereotipadas”.

Ainda que a sua obra “tenha a dimensão plurifacetada e sempre em renovação que é própria dos grandes escritores”, Carlos Reis arrisca “evocar, neste momento de comovida homenagem, alguns dos seus componentes mais fortes e expressivos”. Lembra que “o romancista que em 1980 publicava ‘Levantado do Chão’ – uma espécie de romance de iniciação que confirmava a aprendizagem representada em Manual de Pintura e Caligrafia – pagava uma espécie de tributo literário ao extinto neo-realismo, com o qual mantinha fortes laços de solidariedade ideológica e política”. Mas acrescenta que “logo depois, e na sequência do admirável ‘Memorial do Convento’, Saramago escreve e publica, entre outros ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’ (1984), ‘A Jangada de Pedra’ (1986) e ‘História do Cerco de Lisboa’ (1989)”. Isto, diz Carlos Reis, “significa que ‘Memorial do Convento’ não era um caso isolado, no que à inscrição da História na ficção diz respeito, e significa também que a tematização da História desencadeava inevitavelmente um jogo de variações e de modulações temáticas”.

Entre “os grandes temas que a ficção saramaguiana nos legou”, Reis assinala “a reflexão sobre Portugal e o seu destino (mau destino, para Saramago) de integração europeia, a problematização de mitos portugueses (o de Fernando Pessoa, por exemplo) em articulação com um tempo histórico tão bem identificado como o dos inícios do salazarismo, a revisão crítica e provocatória do Cristianismo, ou a reflexão em clave ficcional sobre as origens históricas e políticas de Portugal, de novo em incipiente “diálogo” com a Europa”.

Após os anos 80, “a mais fecunda década da escrita literária de Saramago, abre-se”, diz Reis, “um tempo de tematização de sentidos, de valores e de temas com um alcance universal”. E “é então, sobretudo, que o registo da alegoria entra decididamente na escrita literária de Saramago; e é por isso que romances como ‘Ensaio sobre a Cegueira’ ou ‘Todos os Nomes’ são e serão lidos como grandes romances da literatura universal”, afirma o ensaísta e professor universitário.

“Diz-se que José Saramago era um escritor polémico. É verdade. São polémicos os escritores que, com desassombro e com arrojada visão do futuro, interpelam os homens e os poderes do seu tempo”, diz ainda Reis, para concluir: “E é justamente quando o fazem, em conjugação com o impulso inovador que às suas obras incutem, que dizemos deles que são grandes escritores”. E Carlos Reis, que acabou há dias de escrever um prefácio para uma edição especial de “O Memorial do Convento”, ilustrada por João Abel Manta – o livro deverá ser lançado em Setembro pela editora Modo de Ler, não hesita em afirmar que “Saramago foi e será um grande escritor”.

O último crente

Para Eduardo Lourenço, Saramago foi, na sua história pessoal e de escritor, “o que de mais próximo tivemos da Gata Borralheira, uma gata borralheira rústica, que nasceu num berço pobre e chegou àquele trono de Estocolmo”. O prémio Nobel, diz, “foi importante para ele, mais foi-o também para o país, por ter sido o primeiro Nobel da Literatura português e porque as probabilidades de que venhamos a ter outro não são muitas”. No futuro, prevê, “a geração dele, que é também a minha, será a geração do Nobel”.
Recordando que o escritor não tinha muito apreço “pelo patético” e que “não gostaria de grandes efusões a título póstumo”, Lourenço considera que o que o romancista trouxe para a literatura foi uma “visão do mundo segundo José Saramago, uma espécie de evangelho segundo Saramago”.


Algo que o ensaísta define como “um diálogo profundo, ambíguo, extraordinário, entre a visão evangélica propriamente dita, na qual foi criado, e uma transformação dessa mensagem, da qual Saramago acreditava ter conservado a essência”. Embora a sua obra “parecesse uma coisa blasfema, ele foi de certo modo o último crente numa civilização que já não crê em nada”. É esse, diz, “o paradoxo da sua vida”.

Saramago, afirma, “imaginou uma arquitectura romanesca que é uma espécie de inversão de signo da tradição mais canónica das nossas letras, construiu um mundo ao revés, que era, para ele, o mundo às direitas, reviu a história de Portugal e da Península – a história dos árabes que poderíamos ter sido –, e reviu a história da modernidade numa espécie de apocalipse”.

Para Lourenço, a obra de Saramago “é incompreensível” se não se tiver em conta “a exposição” do autor”, enquanto “jovem autodidacta”, à Bíblia, que o escritor depois “transformou numa epopeia fantástica”.

Sublinhando que Sramago “não foi um neo-realista canónico”, Lourenço nota que a sua obra “acabou por dar ao neo-realismo uma espécie de glória fantástica”. O ensaísta lembra ainda que o escritor “partilhou a utopia” dos neo-realistas e que viveu o suficiente para “ver o seu fim, em termos históricos”. Mas assinala que este “não se resignou” e que o novo mundo, “embora triunfante, não o convenceu”. Daí que, argumenta, “lhe tenha oposto, numa espécie de vingança, um mundo às avessas”.
A título pessoal, Lourenço diz que, “um pouco paradoxalmente”, gosta em particular de “Todos os Nomes”, um “livro triste”, que considera “um dos grandes romances de amor da literatura portuguesa”. » In Público, 20 Junho 2010

As emoções na tomada de decisão.

in Revista Visão, 11 a 17 de Fevereiro de 2010

A neurociência tem vindo a mostrar que também nas nossas cabeças, com raras excepções, não há preto e branco, mas, antes, cinzento.

António Damásio, radicado nos Estados Unidos da América que, analisando vários pacientes com lesões em regiões cerebrais relacionadas com as emoções, percebeu que estas são essências [nas tomadas de decisão].

Jonah Lehrer, ex-investigador nesta área afirma: «Não existe uma solução universal para o problema da tomada de decisão»; «o mundo real é demasiado complexo. Às vezes precisamos de racionalizar as nossas opções e analisar cuidadosamente as possibilidades. Outras vezes necessitamos de dar ouvidos às nossas emoções. O segredo reside em saber quando usar estes diferentes estilos de pensamento. Precisamos de pensar continuamente sobre a forma como pensamos»

mesmo quando pensamos que tomámos uma decisão puramente racional, a emoção está lá por trás, «influenciando secretamente a avaliação»

Se tivermos uma lesão cerebral num sector relacionado com as emoções, há, obrigatoriamente, um problema no campo da decisão

um caso amplamente estudado por António Damásio: Elliot, um paciente operado a um tumor na cabeça, manteve o mesmo nível de quociente intelectual depois da cirurgia, mas passou a ser incapaz de tomar decisões […] a lesão tinha afectado o seu córtex orbifrontal […] esta parte do cérebro é responsável por integrar as emoções viscerais no processo de tomada de decisão […] liga as emoções geradas pelo cérebro ´primitivo`, com a raiz cerebral e as amígdalas, que se encontram no sistema límbico, ao fluxo do pensamento consciente

O primeiro grande trunfo de um bom decisor é a experiência. Sem o conhecimento é impossível acertar no caminho

Nos momentos cruciais, o cérebro vai buscar à memória – a base em que se apoiam todos os processos de decisão – a informação arquivada em situações anteriores

Jorge Araújo, ex-treinador de basquete e, actualmente, consultor na área da liderança […] exemplifica «Quantas mais decisões as pessoas tiverem tomado anteriormente, maior será a sua capacidade de decidir»

Em situações de grande tensão, o cérebro escolhe o caminho mais fácil, poupa energia seguindo o princípio físico da energia mínima, e opta pela rotina

Nas crianças até aos 6,7 anos, o peso da rotina é muito elevado, por isso é mais eficaz impor a regra: dizer, por exemplo, ´Nunca atravessar quando o sinal estiver vermelho`, em vez de apresentar a excepção - ´Se estiver vermelho, mas não vierem carros, pode passar`

Outro aspecto que sustenta um bom decisor é a sua capacidade de lidar com a adversidade. «A oposição é um factor de progresso», sustenta Jorge Araújo

Para acertar é preciso errar – muitas vezes. «Sem se atrever a falhar, ninguém aprende»

É importante que os miúdos possam experimentar e enganar-se. O erro é a forma mais eficaz de aprendizagem

o cingulado […] a detecção de erros ou a capacidade de aprender com base no reforço negativo. Alterações nesta estrutura tornam as pessoas mas atreitas à dependência de drogas ou do álcool. Não conseguem modificar o seu comportamento, mesmo quando se revela autodestrutivo.

é preciso ter consciência dos erros , interiorizá-los. Por isso, os campeões de xadrez analisam, a posteriori, cada jogada até ao cheque-mate. A auto-crítica é o melhor caminho para o aperfeiçoamento de tal intuição, baseado na experiência.

O pensamento exige intuição, pois é ela que nos permite processar toda a informação que não podemos compreender directamente.

Sara Sá

in Revista Visão, 11 a 17 de Fevereiro de 20010

Entrevista A António Damásio, cientista. «A emoção vem da memória evolutiva»

não existe memória sem emoção. E ainda que, sem emoção, não há decisão.

Grande parte das decisões não é tomada instantaneamente. Tudo depende daquilo que está em jogo. […] Existe um espaço de decisão consciente, em que os indivíduos analisam tudo aquilo que sabem sobre um determinado problema e ponderam, de forma lógica, o que devem ou não fazerem. Essas decisões são influenciadas pela nossa memória, tanto no que diz respeito aos factos como à nossa própria vida, pelas emoções que vivemos no passado e, ainda, por muitos outros factores não conscientes.

As reacções emocionais vêm da nossa memória evolutiva, das coisas apreendidas pelos nossos antepassados, através da história da evolução. Não se trata da aprendizagem directa.

Nós temos vários tipos de memória. A que vem de toda a evolução e que se exprime, sobretudo, sob a forma de emoções, e a que foi adquirida ao longo da nossa vida.

A emoção tem muito mais controlo das reacções instantâneas, automáticas, do que das deliberadas, em que nós podemos pensar sobre o que uma determinada emoção nos levaria a fazer

As reacções emocionais só são mais acertadas quando se trata de situações sobre as quais temos um enorme conhecimento, uma grande experiência ou, ainda, em ocasiões de perigo. […] Tudo depende da experiência, do tempo que temos para tomar a decisão.

Se pusermos uma pessoa que não sabe pilotar a tomar decisões emocionais, o avião cai.

«Podemos treinar a capacidade de decisão?» É isso que fazem as boas escolas. Dão aos estudantes o conhecimento e o exercício da lógica, que lhes vai permitir tomar decisões.

Alice no País das Maravilhas

Hoje fui ao cinema ver a Alice. Revisitei-a.
Confesso que me enterneceu a força da personagem e a modernidade da história. Na verdade vivemos numa permanente metamorfose em busca do: «Quem sou eu?» Recorrentemente, julgando estarmos num mundo sistematizado e ordenado, despertamos num universo avesso e absurdo, do outro lado do espelho, numa desconstrução do primeiro, uma analogia à lagarta em casulo que se descobre borboleta.

«A trama de Lewis Carrol cria universo ficcional caótico que vai sendo conhecido em altíssima velocidade narrativa. Nada real, coisa alguma de realidades. Não deixa o leitor estabelecer relações cognitivas e emocionais no encontro com o texto. O impensado é o desafio a vencer. O País das Maravilhas desliga linguagem de contexto usual e convida ao estranhamento do mundo. Obra de arte, não trata só do nonsense infantil, pois que carrega ordenação lógica singular. Carroll finaliza revelando em que se assenta o seu país: Ah, eu tive um sonho tão esquisito! – diz Alice. O autor faz das aventuras encontros fenomenológicos. Cada episódio guarda níveis de apreensão diversos. A narrativa convoca a capacidade de reordenar as significações. Os encontros de Alice conduzem a pensar a própria linguagem de modo que se torne linguagem primeira redefinindo os próprios limites do mundo. Infância, jogo e linguagem são os marcos essenciais do mundo poético de Carroll. Nenhum suficiente em si para que se compreenda o mundo. Alice não é puro jogo com os significantes. No quinto capítulo, Conselhos de uma Lagarta, filosofia profunda aparece como ingênuo diálogo infantil. “Quem é você?”. Está posta a própria existência em questão. Tantas transformações sofridas e encontros no mínimo inusitados na toca do coelho, longe da família, da escola, das atividades e círculos sociais próximos, a resposta poderá ser errada, porque requer de Alice retomar a própria essência. Tarefa colossal ante as circunstâncias do País das Maravilhas. O desassossego se instala; Carrol questiona a existência antes da autodefinição. Dúvida antes do Verbo A lagarta será borboleta. Espelho da metamorfose. Escapa a Alice a razão de não poder identificar-se. - Bom, quem sabe a sua maneira de sentir talvez seja diferente ... ensaia Alice ainda na tentativa de explicar-se. - Você! - exclamou desdenhosamente a Lagarta. – E quem é você? - Acho que a senhora deveria me dizer primeiro quem é . - Por quê? A nova pergunta desconcerta, confronta sem desvelar-se. Carrol desarticula o mundo instituído. Retoma respostas socialmente aceitas, esvaziadas de significação e lhes dá outro lugar. Só o olhar primeiro, um novo olhar, se permite maravilhar.»

Apoiado no estudo A desconstrução de ilusões, de Milena Shimizu.http://coisaegente.blogspot.com/ http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_739.html (17 Abril 2010)

José Gil, 71 anos

28 Março 2010 - 00h00

Grande Entrevista: José Gil Correio da Manhã

PERFIL

“Há qualquer coisa do espertismo saloio no próprio discurso político em Portugal”, defende

José Gil, 71 anos, nasceu em Moçambique. Em 1957 veio para Lisboa estudar Matemáticas. Mas depressa mudou para Filosofia e licenciou-se em Paris. Há 29 anos regressou para Portugal como professor de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde deu a sua última aula a 10 de Março último. É autor de vários livros, entre eles o best-seller ‘Portugal Hoje – O Medo de Existir’ (ed. Relógio d’Água).

Fez parte das elites intelectuais em frança nos anos 50, 60 e 70. Hoje, com 71 anos, o filósofo que acabou de dar a sua última aula na universidade analisa: “os portugueses não se interrogam muito sobre qualquer que seja o acontecimento da sua vida”.

PERFIL

José Gil, 71 anos, nasceu em Moçambique. Em 1957 veio para Lisboa estudar Matemáticas. Mas depressa mudou para Filosofia e licenciou-se em Paris. Há 29 anos regressou para Portugal como professor de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde deu a sua última aula a 10 de Março último. É autor de vários livros, entre eles o best-seller ‘Portugal Hoje – O Medo de Existir’ (ed. Relógio d’Água).

Fez parte das elites intelectuais em frança nos anos 50, 60 e 70. Hoje, com 71 anos, o filósofo que acabou de dar a sua última aula na universidade analisa: “os portugueses não se interrogam muito sobre qualquer que seja o acontecimento da sua vida”.

- Nesta fase da sua vida, sente que o País precise de si como filósofo?

- Não, porque o País não precisa de um personagem qualquer salvador. Eu não faço a união, há muita gente que pensa contra mim e que não suporta o que eu digo.

- Disse na sua última aula que "as pessoas pensam sozinhas". Por que é que os portugueses pouco questionam as grandes decisões do Governo?

- Os portugueses não se interrogam muito sobre qualquer que seja o acontecimento da sua vida, da vida social, da política.

- Somos um povo inteligente?

- Com certeza. Temos é uma infelicidade, por razões sociais: Substituímos a nossa inteligência – como povo que produz génios, intelectuais, cientistas – pela esperteza. Pior: Pela esperteza saloia.

- Nota isso na nossa governação?

- Absolutamente. Há qualquer coisa mesmo do espertismo saloio no próprio discurso político em Portugal. Foi um chico-espertismo toda – ou quase toda – a propaganda que o Governo fez antes das eleições, para imediatamente a desmentir.

- Falta memória aos portugueses?

- Falta. E falta talvez por um apego que os portugueses têm a um presente, que vale por si. Não estamos a pensar no passado, como nas sociedades rurais que estão a desaparecer. E como nas sociedades modernas – que ainda não somos – não estamos a pensar sempre no futuro.

- Teme pelo futuro?

- Só um tonto não teme pelo futuro. Os nossos dirigentes temem. Nós vivemos num clima ameaçador. De quê? De que realmente aconteça a catástrofe que é a perda do adquirido na qualidade de vida, nas expectativas, em tudo.

[...]

- Disse que o auditório que assistiu à sua última aula estava a abarrotar por causa da "falta de acontecimentos" no País. Não acha que sejamos um povo de filosofar?

- Não se filosofa por razões interiores, é por acontecimentos externos a nós que nos abanam, que nos violentam o pensamento, e somos obrigados a pensar. Não temos muitos filósofos talvez porque há uma pregnância extrema da religião e talvez da poesia, que pretendem dar respostas àquilo que os filósofos se interrogam.

[…]

- Muito bem. Orgulha-se de ter pertencido à classe dos professores?

- Não é bem orgulho, tenho "fierté", esse brio interior de pertencer a uma corporação em que o trabalho é para a comunidade. Ver, de repente, um aluno a abrir-se para qualquer coisa é um espectáculo extraordinário. Infelizmente não se dá a importância na sociedade aos professores.

- São maltratados?

- Foram. Há bastante tempo, mesmo antes do Governo de Sócrates e da ministra Maria de Lurdes Rodrigues ter devastado o ensino, no meu entender.

[…]

- É um homem de paixões?

- Ah, sim. Para mim a vida é fundamentalmente paixão. Quer dizer, um desencadear de energia que pode ser por exemplo a paixão pela criação. Isso abre uma liberdade.

- Está apaixonado pela vida?

- Eu não estou apaixonado pela vida. Se eu a vivesse como vivi... A vida deve ser vivida apaixonadamente.

- Por que é que fala no passado?

- Porque eu vivi um período colectivo, em França, único: Os anos 50, 60 e 70. A paixão intelectual atravessou milhares de pessoas. Foi o momento em que, em Paris, tudo se transformou – artes, cinema, literatura, filosofia, antropologia.

- O facto de ter nascido em Moçambique influenciou o seu pensamento?

- Certamente. E das maneiras mais esquisitas, não foi propriamente só de maneira harmoniosa. Por difracções, por desfasamentos entre a língua e o Sol e a geografia. Entre os espaçamentos entre uma comunidade negra imensa e ilhotas, que eram os brancos.

- Sentia-se apartado?

- Não. Mais tarde, aos vinte e tal anos, quando pensei nisso, verifiquei que ali havia qualquer coisa que me era interdita de viver. Mas que eu não sentia como falta.

[…]

- Gosta dos seus 71 anos?

- A minha idade cronológica não corresponde a outra idade que não sei qual é, mas que é a idade de vida. Eu serei velho pela idade, mas não me sinto velho.

"A LITERATURA É UMA ACTIVIDADE QUE EM MIM É FRUSTRADA"

- Gostaria de ter seguido por uma área das Belas-artes? A sua mãe era poeta.

- Tenho três romances pequeninos publicados. A literatura é uma actividade que em mim é frustrada porque não segui por aí. Mas durante muitos anos, quando eu era novo, eu hesitava entre a filosofia e a literatura.

- Imagino que hoje já não hesita!?

- Hoje não hesito.

[…]

- Não lhe serve de balanço ter sido nomeado um dos 25 mais importantes pensadores do Mundo?

- Não me sobe à cabeça essa classificação. Eu tenho a consciência de uma certa singularidade até pelo que eu deliberadamente não faço: Quando há qualquer coisa já dita, já feita, eu não repito.

Bruno Contreiras Mateus


Livro três – Revelações e Regressos (221-294)

A despedida (221-240)

A serpente não é um animal: é um músculo com dentes, uma despernada centopeia com a barriga no meio do pescoço. Como podia Silvestre Vitalício estar de namoros com tão rasteiro animal? […] E explicou-se: aquela cobra não era senão o Tempo. Durante anos ele tinha resistido contra os arremedos da serpente. Esta noite cedera, desistido (223)

O veneno percorreu-lhe antecipadamente as entranhas e o Tempo começou a apodrecer dentro do seu corpo. - O Tempo é um veneno, Mwanito,. Mais eu lembro, menos fico vivo. […] só existe um verdadeiro suicídio: deixar de ter nome, perder entendimento de si e dos outros. Ficar fora do alcance das palavras e das alheias memórias. (224)

É a solidão que mais tememos na morte. (227)

Em criança não nos despedimos dos lugares. Pensamos que voltamos sempre. Acreditamos que nunca é a última vez. (229)

Ao iniciar esta viagem eu deixara de ser criança. Mwanito ficara em Jesusalém, e eu carecia de um novo nome, um novo baptismo. […] pela primeira vez não me bastava ver o mundo. Eu queria, agora, ver o modo como olhava o mundo. (230)

[Marta] Ao participar daquele fingimento de fim de mundo, ela aprendera a morte sem luto, a partida sem despedida. (236)

- Você, meu filho, nasceu com um coração grande. Com esse coração, você não é capaz de odiar. E este mundo, para ser amado, precisa de muito ódio. […] Jesusalém lhe dera o esquecimento. O veneno da serpente lhe trouxera o tempo. A cidade lhe causara cegueira. (237)

Uma bala vem à baila (241-252)

A verdade era: a mulher me invadira como o Sol enche as nossas casas. Não havia modo de afastar ou impedir essa inundação, não havia cortinado que fechasse aquela luminosidade. (244)

Sem que ninguém mais dessa conta, as palavras de Vitalício subiam ao céu. Era um céu rasteiro, sem fôlego. Mas era o início de um infinito. (247)

A árvore imóvel (253- 266)

Não foi um continente que engoliu Marcelo. Foram os seus demónios interiores que o devoraram. (254)

A vida só sucede quando deixamos de a entender. […] Nunca me imaginei viajando para África. Agora, não sei como regressar à Europa. Quero voltar para Lisboa, sim, mas sem memória de alguma vez já ter vivido. Não, não me apetece reconhecer nem gente, nem lugares, nem sequer a língua que nos dá acesso aos outros. (254)

se temos de viver na mentira que seja na nossa própria mentira. […] o mundo termina quando já não somos capazes de o amar. […] a vida não foi feita para ser pouca e breve. E o mundo não foi feito para ter medida. […] as palavras podem ser o arco que liga a Morte e a Vida. (255)

a minha única morte foi a de Marcelo. Essa, sim, foi o primeiro desfecho definitivo. Não sei se Marcelo foi o amor da minha vida. Mas foi uma vida inteira de amor. Quem ama, ama para sempre. Nunca faças nada para sempre. Excepto amar. (256)

Dordalma saiu […] para ser olhada e invejada. O vestido era de cegar um mortal e o decote era de fazer um cego ver o céu. […] Era ela toda inteira. Em casa, Dordalma nunca era mais do que cinza, apagada e fria. […] saiu de casa para, vestida para semear devaneios. […] E suspiravam de inveja, as mulheres; de desejo, os homens. Raiavam nas pupilas dos machos as mesmas dilatadas veias que enchem os olhos dos predadores. […] Nessa manhã tua mãe entrou no chapa-cem e espremeu-se ente os homens que enchiam a viatura. (256-257)

A verdade é que, de acordo com as esquivas testemunhas, Dordalma foi arremessada ao solo, entre babas e grunhidos, apetites de feras e raivas de bicho. E ela foi-se afundando na areia como se nada mais protegesse o seu frágil e trémulo corpo. Um por um, os homens serviram-se

[…]

Mais tarde, o teu silêncio, Mwanito, foi a sua defesa contra esse eco recriminador. (257- 260)

Suicídio de mulher casada é o vexame maior para qualquer marido. […] perdida a posse da sua própria vida, ela atirara na cara do teu pai o espectáculo da sua própria morte. (261)

Agora sabes por que razão Ntundi partiu com Kalash […] por que motivo Silvestre temia o vento e a dança das árvores evocando fantasmas. Gora sabes dos motivos de Jesusalém e do exílio dos Venturas fora do mundo. […] Para Silvestre o passado era uma doença e as lembranças um castigo. Ele queria morar no esquecimento. Ele queria viver longe da culpa. (263)

- Nós mulheres. Por que acreditamos tanto, tudo?

- Porque temos medo.

O nosso medo maior é o da solidão. Uma mulher não pode existir sozinha, sob o risco de deixar de ser mulher. Ou se converte, para tranquilidade de todos, numa outra coisa: numa louca, numa velha, numa feiticeira. Ou, como diria Silvestre, numa puta. Tudo menos mulher. (264)

O livro (267- 294)

Desde então, Noci passou a acontecer como a Lua. Visível apenas em estações do mês. E eu passei a suceder por marés, sazonalmente me inundando de mulher. (275)

- Quem te ensinou a amar as mulheres?

Devia ter respondido: foi a falta de amor. (277)

Tememos a morte, sim. Mas nenhum medo é maior que aquele que sentimos da vida cheia, da vida vivida a todo o peito. (286)

[Silvestre Vitalício] A fronteira entre Jesusalém e a cidade não foi nunca traçada pela distância. O medo e a culpa foram a única fronteira. […] O medo me fez viver, recatado e pequeno. A culpa me fez fugir de mim, desabitado de memórias. […] Só esse Deus me aliviaria de um castigo que a mim mesmo me havia imposto. Contudo, só agora eu entendi: meus dois filhos, só eles me podem trazer esse perdão. (293)

A ternura daquela mulher [Noci] me confirmava que meu estava errado: o mundo não morreu. Afinal, o mundo nunca chegou a nascer. Quem sabe eu aprenda, no afinado silêncio dos braços de Noci, a encontrar a minha mãe caminhando por um infinito descampado antes de chegar à última árvore. (294)