Livro Dois: A Visita (123-218)

A Aparição (123-138)
Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências.
Uma vida inteira pode ser virada do avesso num só dia por uma dessas intermitências. (123)

A tempestade parecia a sublevação dos pontos cardeais [...] os desmandos cósmicos (124)

a porta da frente do casarão se destrancou por si mesma. Para mim era um sinal: uma invisível mão me convidava a cruzar a linha proibida. [...] De súbito vi o corpo. [...] Um redemoinho interior me tonteou. [...] O corpo se certificava, estrumado na varanda. (125)

o buraco nunca chegou a ficar pronto. Assim que chegávamos ao fundo, a areia soprada pelo vento recobria a cova por completo. E aconteceu uma, duas e três vezes (128)

Onde antes jazia o corpo, não havia resto de coisa alguma [...] Aos poucos, um novo estado de espírito se instalou em mim, revertendo o susto em sobranceiro sossego. (130)

eu nunca tinha exercido a minha própria infância, meu pai me envelhecera desde nascença.
Foi então que sucedeu a aparição: surgida do nada, emergiu a mulher. (131)

Inesperadamente, já não sabia viver, a Vida se havia convertido numa desconhecida língua. (132)

A intrusa passou por mim, senti pela primeira vez a doçura de um perfume feminino. [...] Deitei tento no modo como se movia, graciosa, mas sem os caricatos trejeitos com que Ntzundi representara as fêmeas criaturas. [...] Aquela era a primeira mulher e ela fazia o chão evaporar. [...] Aquele primeiro encontro marcou em mim, fundo, o misterioso poder das mulheres. (133)

Meu pai queria fechar o mundo fora dele. Mas não havia porta para ele se trancar por dentro. (137)

percorri, olhos e dedos, os papéis de Marta. Cada folha foi uma asa em que ganhei mais tontura (138)

Os papéis da mulher (139-152)

Sou mulher, sou Marta e só posso escrever. [...] E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. [...] Não tenho saudade, não tenho memória: meu ventre nunca gerou vida, meu sangue nunca não se abriu em outro corpo. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja. (139)

Essa fidelidade levou-me ao mais penoso dos exílios: esse amor afastou-me da possibilidade de amar [...] Porque eu preciso tanto de nascer! De nascer outra, longe de mim, longe do meu tempo. [...] Para se estar vazia é precio ter dentro. E eu perdi a minha interioridade. [...]
Vês como fico pequena quando escrevo para ti? [...] a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim.
Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. (140)

ardo para viver. E morro afogada pela minha própria pele. (141)

sou uma palavra, tu me escreves de noite, de dia me apagas. Cada dia é uma folha que tu rasgas, sou o papel que espera pela tua mão, sou a letra que aguardo pelo afago dos teus olhos.

[…]

Nada é anterior a mim, estou inaugurando o mundo, as luzes, as sombras. Mais do que isso: estou fundando as palavras. Sou eu que as estreio, criadora do meu próprio idioma. (142)

Perseguida pelo medo da velhice, deixei envelhecer a nossa relação. Ocupada em me fazer bela, deixei escapar a verdadeira beleza, que apenas mora no desnudar do olhar. O lençol esfriou, a cama se desventurou. […] Eu ficava bela para mim, que é um outro modo de dizer: para ninguém. […] essas negras […] são sempre de corpo inteiro. […] Todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nós, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa. (143)

tu eras um poeta. Eu era a tua poesia. (144)

Só nua eu te podia ler. Porque te recebia não em meus olhos, mas com todo o meu corpo, linha por linha, poro por poro. […] viajar só me interessava se fosse para atravessar infernos, passar a alma por labaredas […]as mulheres explicam-se a si mesmas falando sobre os seus homens. (145)

há lembranças que apenas na morte se reencontram. (146)

quem mais me fez companhia na tua ausência foi a tua amante. (147)

Só agora entendi que a sedução mora em outro lugar. Talvez no olhar. (148)

Ao contemplar a queimada na savana, me veio uma saudade dessa troca de fogo, o espelho do deslumbramento em Marcelo. Deslumbrar, como manda a palavra, deveria ser cegar, retirar a luz. […] do amor me interessa o não-saber, deixar o corpo fora da mente, em descomando absoluto. Mulher apenas na aparência. Debaixo do gesto: bicho, fera, lava.[…] Ele dizia-me - «vou contar estrelas» [...] O dedo pontuava os ombros, as costas, o peito. Meu corpo era o céu de Marcelo. E eu não soube voar, entregar-me ao torpor daquele contar de estrelas. (149)

Eu era uma tradutora surda, incapaz de verter em gesto o desejo que falava dentro de mim. (149-150)

Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos. (150)

O meu amor escrevia de modo tão profundo que, no decurso da leitura, eu sentia o braço dele roçando o meu corpo e era como se desabotoasse o vestido e as roupas desabassem a meus pés. (150)

- A poesia é uma doença mental. (151)

Os homens não olham as mulheres que acabaram de amar porque têm medo. Têm medo do que podem encontrar no fundo dos olhos dela. (151)

Ordem de expulsão (153-172)

Tememos a Deus porque existe, mais medo temos do demónio porque não existe. (153)

Aqui [África] o Sol geme, sussura, grita. […] Lá, o Sol é uma pedra. Aqui, é um fruto. (158)

O amor é um território onde não se pode dar ordens. E ele criara um recanto governado pela obediência. (161)

As mulheres são como as guerras: fazem os homens ficarem animais. (162)

Segundos papéis (173-189)

Ela se separaria em duas como um fruto que se esgarça: o seu corpo, era a polpa, era a alma […] De noite, depois de ter sido comido, lambuzado e cuspido, o corpo retornaria ao caroço e ela dormiria, enfim, como um fruto. (179)

Como se pode ser feliz tendo um corpo que deixou de ser nosso. O sexo, disse ela, não se faz nem com o corpo nem com a alma. Faz-se com o corpo que está debaixo do corpo. (179)

Depois da chuva terminar, porém, é que sucedeu a inundação: um dilúvio de luz. Intensa, total, capaz de cegar. E me surgiram quase indistintas, a água e a luz. […] Todas as cores descoloriram, todo o espectro se tornou num lençol de brancura. (185)

Este silêncio não é calmaria alguma que tivesse experimentado antes. Não é uma ausência que apressadamente preenchemos com o medo do vazio. É um despertar por dentro. Eis o que sinto: sou possuída pelo silêncio. Nada é anterior a mim, penso. […] - Sou a primeira criatura […] De repente, o sentimento de criação se ensombra. Nada, afinal, é um princípio. Na minha vida tudo é agónico, terminal. Eu sou a que já fui. (187)

A nudez da mulher negra, contudo, me conduzia ao meu próprio corpo. Pensando no modo como via o meu corpo concluí: eu não sabia estar nua. E dei conta: o que me cobria não era tanto o vestuário mas a vergonha. […] África não era um continente. Era o medo da minha própria sensualidade. (188)

A loucura (191- 204)

O silêncio é uma travessia. Há que ter bagagem para ousar essa viagem. (192)

- Cada um de nós foi uma mentira, mas nós os dois fomos verdade. Entende Mwanito? (200)

Para o louco, falar é sempre pouco. O que ele queria dizer estava para além de qualquer idioma. (201)

Ordem para matar (205- 218)

A verdade é triste quando é única. Mais triste quando a sua feitura não tem […] o concerto da mentira. (205)

Os bichos são pré-criaturas. O Homem é que é patenteável. Só rasgando a última página do livro de Deus é que ele desafia os poderes divinos. (207)

- Metade do que fiz foi errado [Zacaria]; o resto foi mentira. (209)


Vá lá. façam o favor de serem felizes neste NATAL.

"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo, e que posso evitar que ela vá a falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.

Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um "não". É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?

Guardo todas.

Um dia vou construir um castelo..."

(Fernando Pessoa)

Um apontamento de «Natal».

Aqui fica uma pequena nota para reflexão neste fim de período a adivinhar o Natal.

1. Ignorem a professora que, na sua incapacidade, desespera.
«Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. o pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro». Mia Couto. (Jesusalém, p:57).
As oportunidades é para se cumprirem no seu nascimento.



2. As «novas oportunidades» são renascimentos tardios para os que conseguem vencer os seus demónios.



Uma canção de Natal para vencer a ironia da contemporaneidade.