Livro Um - A Humanidade (13-119)

Eu, Mwanito, o afinador de silêncios (13-32)

A humanidade era eu, meu pai, meu irmão Ntunzi e Zacarias Kalash [...] Jezibela, tão humana que afogava os devaneios sexuais de meu velho. E também não referi o meu Tio Aproximado (14)

Ninguém é de uma raça. As raças [...] são fardas que vestimos [...] eu aprendi, tarde demais, que essa farda se cola, às vezes, à alma dos homens. (15)

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que podemos brilhar [...] Eu nasci para estar calado [...] tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios (15)

E todo o silêncio é música em estado de gravidez (16)

O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas (20)

Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus (20)

os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas (20-21)

Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. (25)

Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros lugares (27)

do ventre do rio contemplei os rebrilhos do sol [...] A ideia de peixarmos, cativos dentro de água, me conduziu à terrível conclusão: os outros, os do lado do Sol, eram os vivos, as únicas criaturas do mundo (30-31)

Meu Pai, Silvestre Vitalício (33-58)

O vento era, para Silvestre, uma dança de fantasmas. As árvores, ventadas, convertiam-se em pessoas, eram mortos que se lamentavam, a querer arrancar as suas próprias raízes. (33-34)

Dordalma […] Em lugar de se esfumar no antigamente, ela se imiscuía nas frestas do silêncio, nas reentrâncias da noite. (35)

meu pai vazara o mundo para o poder encher com as suas invenções. (36)

Silvestre Vitalício sabia tudo e esse saber absoluto era a casa que me dava resguardo. Era ele que conferia nome às coisas, era ele que baptizava árvores e serpentes, era ele que previa ventos e enchentes. Meu pai era o único Deus que nos cabia. (36-37)

Rebaptizados, nós tínhamos outro nascimento. E ficávamos isentos do passado. (41)

Todo o nascimento é uma exclusão, uma mutilação. Fosse vontade minha e eu ainda seria parte do seu corpo [mãe], o mesmo sangue nos banharia. Diz-se «parto». Pois seria mais acertado dizer «partida». (44)

Eu já aprendera a vislumbrar as líquidas luzes do rio, já sabia viajar por letrinhas como se cada uma fosse uma estrada infinita. (48)

- Há visitas que nem se dá conta. São anjos e demónios que chegam sem pedir licença… […]

- Anjos ou demónios, a diferença não está neles. Apenas está em nós. (49-50)

Talvez fosse esse desespero que o fazia entregar a uma religião pessoal, uma interpretação muito própria do sagrado. Em geral, o serviço de Deus é perdoar os nossos pecados. Para Silvestre, a existência de Deus servia para O culparmos pelos pecados humanos. Nessa fé às avessas não havia rezas, nem rituais: uma simples cruz a entrada do acampamento orientava a chegada de Deus ao nosso sítio. (52)

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. o pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro. (57)

Meu irmão, Ntunzi (59-74)

Silvestre achava que uma boa história era uma arma mais poderosa que um fuzil ou navalha. (59-60)

[Ntunzi] - Neste mundo existem os vivos e os mortos. E existimos nós, os que não temos viagem. (60)

A cegueira é o destino de quem se deixa tomar de assalto pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo.
-Mulheres são como as ilhas: sempre longe, mas ofuscando todo o mar em redor. (62)

Os mortos não morrem quando deixam de viver, mas quando os votamos ao esquecimento. (65)

O medo faz dilatar as distâncias. [...] Era o pior dos maus-olhados: aquele que lançamos sobre nós próprios. (71)

Não viver é o que mais cansa. (72)

O Tio Aproximado (75-88)

- são todos cúmplices, esses dois muito triplos - garantia Ntzundi. - É o sangue que os liga, sim, mas é o sangue dos outros. (78)

- saudade é esperar que a farinha se refaça em grão. (80)

Quem perde esperança foge. Quem perde confiança esconde-se. (81)

O Tio Aproximado ficou pontapeando as pedras do átrio. A raiva é apenas um modo diverso de chorar. Conservei-me distante, fingindo que arrumava as ferramentas. Ninguém se deve aproximar de um homem que faz de conta que não chora. (83)

Pois digo e repito. De que vale ter crença em Deus se perdemos fé nos homens? [...] Política? A política morreu, foram os políticos que a mataram. Agora, restou apenas a guerra (87)

Zacaria Kalash, o militar (89-104)

- Estes são os avessos dos meus umbigos. POR aqui – e apontava os buracos – por aqui se escapou a morte (p. 90)

O que ele queria era contar histórias de caça, falar sem conversar, escutar-se a si mesmo para deixar de ouvir os seus fantasmas. (p. 91)

Nós não entendíamos Jesusalém, dizia Kalash. – As coisas, aqui, são pessoas – explicou. Queixávamo-nos que estávamos sós? Porém, tudo em nosso redor eram pessoas, humanas criaturas vertidas em pedras, em árvores, em bichos. E até em rio. (p. 101)

A jumenta Jezibela (105 - 119)

Afinal o Lado-de-Lá estava vivo e governava as almas de Jesusalém (p. 119)

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