Um rápido olhar sobre jesulalém

Mia Couto surpreendeu, mais uma vez, com Jesusalém. O amadurecimento da estrutura do romance não trai a matriz dos seus conto; a entrada abrupta na história, a fragilidade psicológica das suas personagens, nem a «ilógica» do pensamento estruturante que transpira da cosmovisão inscrita nas suas obras.

«Mwanito, o afinador de silêncios» é o narrador, o contador de histórias que vai desfiando das suas memórias, entretecendo as verdades que cada personagem sustenta, deixando ao leitor o prazer de desenlaçar a crença de cada um e conseguir uma visão de conjunto.

De um modo abrupto chegamos a Jesusalém, cientes de um passado que todas as personagens se esforçam em esquecer, negando a história. Fugindo da realidade cruel, reinventarem-se no imaginário de veredas de Jesusalém, um espaço real, mas sonhado de modo diverso.

São estes caminhos encruzilhados e sulcados no interior das personagens que o imaginado tenta cicatrizar e rearranjar o passado obrigado a esquecer. Tanto Silvestre Vitalício que decreta: «vocês não podem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro», como o militar Zacaria Kalach desejam fugir do passado e do tempo que os devora. Assim, inauguram uma nova ordem, mudando o nome com excepção do narrador, ainda muito novo para ser do tempo passado.

É neste enquadramento que se vão anulando as identidades, indiciando os afectos e os desafectos passados com o sagrado feminino como a razão desta ordem, com forte expressão na negação do feminino. No entanto, é sedutor o contraditório da trama urdida por Mia Couto ao destacar vozes poéticas do feminino, dando enfoque ao feminino como temática central do romance. É neste contexto que Ba Ka Khosa realça aspectos incontornáveis: «a escolha de mulheres poetas para os cantos, e da mulher mãe, amante, esposa, como desencadeadora da trama romanesca. Este jogo entre os vates dos salmos, e os personagens do romance – maioritariamente masculinos – dá-nos a dimensão indescritível do mundo efabulatório de Mia Couto. Nos cantos, as musas, as deusas, o sagrado feminino expressando-se na mais elevada linguagem: a poesia. No romance, no texto, a negação do feminino, a desacralização da mulher, a diabolização da criadora da vida».

Este olhar de Mia Couto sobre a mulher incomoda preconceitos sociais, confronta sensibilidades masculinas e femininas e coloca-se numa dimensão da essência do eu que se exprime feminino. São estas provocações que vão despertanto consciências e moldando comportamentos. Já Marguerite Yourcenar havia notado estes contrasensos: «A vida das mulheres é limitada demais ou excessivamente secreta. Que uma mulher se conte, e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil pôr qualquer verdade na boca de um homem».

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