Saeculum aureum (119-162)


Antínoo era grego [...] Mas a Ásia havia produzido naquele sangue um pouco acre o efeito da gota de mel que turva e perfuma o vinho puro. (p. 122)

Só fui senhor absoluto uma única vez e de um único ser (p. 122)

Uma hora de sol fazia-o passar da cor do jasmim à do mel [...] o jeito de infantil de fazer beicinho carregou-se de uma amargura ardente, de uma saciedade triste. Na verdade aquele rosto mudava como se eu o tivesse esculpido dia e noite. 
Quando me volto de novo sobre esses anos julgo encontrar a Idade de Ouro. Tudo era fácil: outrora os esforços eram recompensados por uma satisfação quase divina. 
A paixão cumulada  cumulada tem a sua inocência, quase tão frágil como qualquer outra
[...] ao romper do dia descíamos para nos banharmos nas margens do rio, pisando, ao passar, as altas ervas molhadas pelo orvalho nocturno, sob um céu donde pendia o delgado crente da lua (p. 122)
A travessia do Bósforo sob a tempestade de neve foi bela; houve cavalgadas na floresta trácia, com o vento áspero engolfando-se nas pregas das capas (p. 124)

erigiu-se uma coluna, onde foi gravado um poema, para comemorar essa lembrança de um tempo em que tudo, visto a distância, parece ter sido nobre e simples, a ternura, a glória, a morte. (p. 124-125)

Avistava por entre as cordas o perfil do meu jovem companheiro, sensatamente ocupado a desempenhar a sua parte no conjunto, e os seus dedos tocando com cuidado ao longo dos fios esticados. Este belo Inverno foi rico de convívios amigáveis (p. 126)

Aquele belo ser sensual encarava a morte com horror; eu não me apercebia de que ele já pensava muito nela. Quanto a mim, compreendia mal que se deixasse voluntariamente um mundo que me parecia belo, que se não esgotasse aé ao fim, a despeito de todos os males, a última possibilidade de pensamento, de contacto e mesmo de olhar. Mudei muito depois. (p. 128)

do alto do Etna [...] desenrolou-se de um horizonte ao outro um imenso véu de Íris; sobre as neves dos cimos brilharam estranhos fogos; o espaço terrestre e marítimo abriu-se ao noso olhar até a África visível e a Grécia adivinhada. Foi um dos momentos culmiantes da minha vida. Não faltou nada, nem a franja dourada de uma nuvem, nem as águias, nem o copeiro da imortalidade [...] confesso sem rodeios as causas secretas dessa felicidade: aquela calma tão propícia aos trabalhos e às disciplinas parece-me um dos mais belos efeitos do amor (p. 128)

Naquela época punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la, e também em julgá-la, a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores dos meus actos; e que é a própria voluptuosidade senão um momento de atenção apaixonada do corpo? Toda a felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor deselegância desfeia-a, a menor estupidez embrutece-a. (p. 129)

Todas as divindades me pareciam, cada vez mais, misteriosamente fundidas num todo, emanações infinitamente variadas, manifestações iguais da mesma força: as suas contradições não eram mais do que uma forma de acordo. (p. 130) 

Há muito tempo já que eu preferia as fábulas relativas aos amores e às querelas dos deuses aos comentários ineptos dos filósofos sobre a natureza divina; aceitava ser a imagem terrestre daquele Júpiter tanto mais deus quanto é homem (p. 132)

Gostava muito que figurasse nas moedas romanas um perfil de imperatriz tendo no reverso uma inscrição, umas vezes ao Pudor, outras à Tranquilidade (p. 133)

O meu jovem pastor tornava-se um jovem príncipe. Já não era a criança zelosa que, nas paragens, saltava do cavalo para me oferecer água das fontes recolhida nas suas mãos: o doador sabia agora o imenso valor dos seus dons. 

Ofereço aqui aos moralistas uma ocasião fácil de triunfar sobre mim (p. 134)

Entre tantos disfarces, no meio de tantos prestígios, aconteceu-me esquecer a pessoa humana, a criança que se esforçava em vão para aprender Latim, que pedia ao engenheiro Decriano que lhe desse lições de Matemática e depois renunciava a elas, e que, à mínima censura, ia amuado para a proa do navio, contemplando o mar. (p. 136)

Foi então que uma melancolia momentânea me apertou o coração: pensei que as palavras acabamento, perfeição, contêm em si a palavra fim: talvez eu tivesse somente oferecido mais uma presa ao tempo devorador. 

Não amava menos; amava mais. Mas o peso do amor, como o de um braço ternamente pousado sobre um peito, tornava-se pouco a pouco mais difícil de suportar. (p. 137)

Aconteceu-me bater-lhe: lembrar-me-ei sempre daqueles olhos assombrados. Mas o ídolo esbofeteado continuava a ser ídolo, e os sacrifícios expiatórios começavam. (p. 138)

O tempo de Elêusis tinha passado [...] convinham àquele momento da vida em que a dança se torna vertigem, em que o canto se acaba em grito (p. 139)

Dominava-me a curiosidade dessas regiões intermédias em que a alma e a carne se fundem, em que o sonho responde à realidade e, por vezes, a ultrapassa, onde a vida e a morte trocam os seus atributos e as suas máscaras.

não será a alma apenas o supremo resultado do corpo, frágil manifestação da dor e do prazer de existir? É, pelo contrário, mais antiga que este corpo modelado à sua imagem, e que, melhor ou pior, lhe serve momentaneamente de instrumento? É possível chamá-la ao interior da carne, restabelecer entre elas esta união estreita, esta combustão a que chamamos vida? Se as almas possuem a sua identidade própria, podem elas tocar-se, ir de uma para outra como o bocado de um fruto, o gole de vinho que dois amantes passam um ao outro num beijo? Todos os sábios mudam de opinião sobre estes assuntos vinte vezes por ano. (p. 141) 

Em Alexandria as religiões são tão variadas como os negócios: a qualidade do produto é mais duvidosa. (p. 147)

Jerusalém significava-me, pela boca de Akiba, a sua vontade de se conservar até o fim a fortaleza de uma raça e de um deus isolados da raça humana. (p. 148)

Antínoo, deitado no fundo da barca, encostara a cabeça aos meus joelhos; [...] A minha mão deslizou na sua nuca, sob os cabelos. Nos momentos mais vãos ou mais ternos, eu tinha ainda o sentimento de ficar em contacto com os grandes objectos naturais, a densidade das florestas, o dorso musculado das panteras, o pulsação regular das fontes. Mas nenhuma carícia chega à alma. (p. 150)

uma criança receosa de perder tudo encontrara o meio de me ligar a si para sempre. Se pensou proteger-me com aquele sacrifício, deve ter-se julgado bem pouco amado para não sentir que o pior dos males seria perdê-lo. (p. 154-155)

Estava fatigado daquelas figuras colossais de reis todos idênticos, sentados lado a lado, apoiando na sua frente os pés longo e chatos, daqueles blocos inertes em que não está presente coisa alguma daquilo que para nós constitui a vida, nem a dor, nem a reflexão que organiza o mundo em volta de uma cabeça inclinada. (p. 155-156)

o imperador […] pegou na sua adaga e lavrou naquela pedra dura algumas letras gregas, uma forma abreviada e familiar do seu nome ADRIANO… Era ainda uma oposição ao tempo: um nome, uma soma de vida de que ninguém computaria os inúmeros elementos, uma marca deixada por um homem perdido nesta sucessão de séculos (p. 156)

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