Tellus stabilita (77-118)

Tentei demonstrar aos Gregos que não eram eles sempre os mais sábios e aos Judeus que não eram de modo algum os mais puros. [...] Aquelas raças, que viviam há séculos porta com porta, nunca tinham tido a curiosidade de se conecher nem a decência de se aceitar mutuamente. (p. 80)

sabia que o bem, como o mal, é uma questão de rotina, que o temporário se prolonga, que o exterior se infiltra no interior e que, com o decorrer do tempo, a máscara toma-se face. Pois que o ódio, a estupidez, o delírio têm efeitos duradouros, não via razão para que a lucidez, a justiça, a benevolência não tivessem também os seus. (p. 80)

Confessei o meu medo: não me sentia mais isento de crueldade que de qualquer outra tara humana: aceitava o lugar-comum que diz que o crime atrai crime, a imagem do animal que uma vez provou o gosto do sangue (p. 83)

Cada um de nós tem mais virtudes que os outros supõem, mas só o êxito as torna notórias, talvez porque se espera então que deixemos de as praticar. Os seres humanos confessam estupidamente as suas piores fraquezas quando se espantam de que um senhor do mundo não seja indolente, presunçoso ou cruel. (p. 85)

aprendi a suportar os Jogos […] Detestava aqueles massacres em que a fera não tem uma probabilidade; no entanto, ia percebendo pouco a pouco o seu valor ritual, os seus efeitos de trágica purificação sobre a multidão inculta (p. 86)

aparentar desdém pela alegria dos outros é insultá-los (p. 86)

A moral é uma convenção privada; a decência é uma questão pública; todo o desregramento excessivamente visível deu-me sempre a impressão de uma exibição de má qualidade (p. 86)

Sobre a amizade de Plotina a sua amizade continuava a ser exigente, mas, apesar de tudo, só tinha exigências sensatas (p. 87)

Todo o prazer sentido com gosto me parece casto (p. 88)

Um triunfo só assenta bem aos mortos. Durante a vida há sempre alguém para censurar as nossas fraquezas, como outrora a César sua calvíce e os seus amores (p. 88-89)

Roma já não cabe em Roma: daqui em diante tem que decair ou igualar-se a metade do mundo [...] Virtudes que eram suficientes para a pequena cidade das sete colinas teriam que tornar-se flexíveis, diversificar-se, para convirem à terra inteira. (p. 89-90)




toda a criação humana que aspira à eternidade deve adaptar-se ao ritmo instável dos grandes objectos naturais, harmonizar-se com o tempo dos astros (p. 90)



E agradecia aos deuses por me terem concedido viver num tempo em que a tarefa que me coube consistia em reorganizar prudentemente o mundo e não em tirar do caos uma matéria ainda informe ou deitar-me sobre um cadáver para tentar ressucitá-lo (p. 90-91)



Alegrava-me que as nossas religiões vagas e veneráveis decantadas de toda a intransigência ou de todo o ritual selvagem, nos associassem misteriosamente aos sonhos mais antigos do homem e da terra, mas sem nos proibir uma explicação laica dos factos, uma visão racional do comportamento humano. Agradava-me enfim que estas mesmas palavras Humanidade, Felicidade, Liberdade não houvessem ainda sido desvalorizadas por demasiadas aplicações ridículas. (p. 91)



toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado. E nunca prestei grande atenção às pessoas bem intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. (p. 91)



Devo acrescentar que acredito pouco nas leis. Demasiado duras, são transgredidas com razão. Demasiado complicadas, o engenho humano encontra facilmente maneira de se escapar por entre as malhas dessa nassa monótona e frágil. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que tem de mais profundo a piedade humana; serve também de almofada à inércia dos juízes. As mais velhas participam daquela selvageria que se empenhavam em corrigir; as mais veneráveis são um

produto da força. (p. 91-92)



Até agora todos os povos decaíram por falta de generosidade (p. 93)



Duvido de que toda a filosofia do mundo consiga suprimir a escravatura: o mais que poderá suceder é mudarem-lhe o nome. (p. 93)



A condição das mulheres é determinada por estranhos costumes: são ao mesmo tempo dominadas e protegidas, fracas e poderosas, excessivamente desprezadas e excessivamente respeitadas. Neste caos de usos contraditórios, a sociedade sobrepõe-se à natureza [...] A fraqueza das mulheres, como a dos escravos, resiste à sua condição legal; a sua força vinga-se nas pequenas coisas em que o poder que elas exercem é quase ilimitado (p. 94)



Somos funcionários do Estado, não somos Césares (p. 97)



Construir é colaborar com a terra; é pôr numa paisagem uma marca humana que a modificará para sempre (p. 101)



Cada pedra era a estranha concreção de uma vontade, de uma memória, por vezes um desafio. Cada edifício era o plano de um sonho (p. 102)



Sou como os nossos escultores: o humano satisfaz-me; nele encontro tudo, até o eterno. (p. 104)


O vento atirou-nos muitas vezes seguidas para a costa que havíamos deixado: aquela travessia contrariada proporcionou-me espantosas horas vazias […]
durante a sua vida breve, cada homem tem sempre que escolher, entre a esperança infatigável e a sensata ausência de expectativa, entre as delícias do caos e as da estabilidade, entre o Titã e o Olímpico. A escolher entre eles ou a conseguir pô-los, um dia, de acordo um com o outro. (p. 108)



Estas vistas do espírito são desprovidas de valor prático: deixam contudo de ser absurdas desde que o calculador se conceda, para as suas computações, uma porção bastante vasta de futuro (p. 108- 109)


Era um sábio indiano [...] as suas meditações o induziam a acreditar que o universo inteiro não é mais do que um tecido de ilusões e erros: a austeridade, a renúncia, a morte eram para ele o único meio de escapar à corrente variável das coisas [...] de encontrar, para além do mundo dos sentidos, aquela esfera do divino puro, aquele firmamento fixo e vazio com o qual Platão também sonhou [...] Aquele brâmane chegara ao estado em que coisa alguma, excepto o seu corpo, o separava já do deus intangível, sem substância e sem forma (p. 112)


Elêusis [...] Aqueles grandes ritos simbolizam apenas os acontecimentos da vida humana, mas o símbolo vai mais longe do que o acto, explica cada um dos nossos actos em termos de mecânica eterna (p. 115)


Uma vez na minha vida fiz mais, ofereci às constelações o sacrifício de uma noite inteira[...] entreguei-me, do anoitecer à madrugada, àquele mundo de chama e de cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. [...] conheci mais de um êxtase: há alguns atrozes e outros de uma perturbante doçura. [...] Mas a noite síria representa a minha parte consciente de imortalidade. (p. 117)

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